1.“O clima fechou, quarta passada, no Jockey Club, no Rio. É que duas babás, que tomavam conta de duas crianças, entraram na piscina com as miúdas.
Uma madame não gostou e esbravejou com diretores. Ficou decidido que babá não pode entrar na piscina”, informou Ancelmo Góis no Globo.
2. Mesmo diante do verão historicamente mais inclemente já ocorrido no Sudeste e ainda que por razões de segurança visando proteger as crianças, babás não podem entrar no mesmo meio líquido em que flutuam madames. Compartilhar o mesmo ar parece que ainda pode; a mesma água, não. A cena sugere uma analogia com século e meio de atraso: relatou-me o psiquiatra Benilton Bezerra que um norte-americano criou, à época, uma patologia psiquiátrica para diagnosticar o “ absurdo e doentio desejo dos negros escravos por liberdade”. É fato. Era.
3. Não se está aqui discutindo este mundo infinitamente terminal de regras. Graças a elas o Custo Brasil é o que é. Estamos paquidermicamente empacados no Ministério da Fazenda ou no Jockey Club. O que vale é a regra da Casa-Grande & Senzala: manda quem detém o poder. Ficou, portanto, tomada a definitiva decisão: babá não entra na água nem para salvar criança se afogando.
4. O que aqui se discute é porque continuamos a ser tão desiguais. Cidadania exige o exercício do espírito comunitário. Se por uma série de circunstâncias históricas o brasileiro não conseguiu ocupar o palco dos acontecimentos políticos e sociais, nem se converter em ator do próprio enredo pela cidadania, que pressupõe esse espírito comunitário, ele acaba por se projetar nos ídolos e sonha em se tornar um deles.
5. É um tipo de conquista individualista que reflete a falta de laços coletivos, porque sempre idealizamos algo que esta externo a nós.
6. O que nos é, de certa forma externo, à exceção dos laços coletivos do mesmo grupo ou tribo? Uma das respostas é não se converter em ator do próprio enredo, mas sim ver-se no outro. O brasileiro ama o personagem que, por um golpe de sorte ou graças a “genialidade” no que faz, como no exemplo dos jogadores de futebol e artistas (incluindo os MCs do funk ostentação), tenha poder – não o político, mas o poder como acesso irrestrito às fontes de prazer. Um prazer de valor imediato, que se pode comprar, usufruir e abandonar.
7. A mídia amplifica o triunfo e aumenta a popularidade do personagem, alvo da inveja e do desejo. Ficam as telinhas eletrônicas e as páginas impressas repletas de “personagens famosos” que se encarregam de representar a soma de todas as qualidades “humanas” e de alegria de viver, ausentes do cotidiano da maioria dos indivíduos, relegados a papéis secundários.
8. Aqui frutifica o que se encontra no mundo das representações – da própria vida! – que é o espetáculo.
9. Vemos, ouvimos, lemos. E calamos. Rara vez há algum tipo de reação nevrálgica ao que nos é imposto. Nos agarramos ao controle remoto, que nos permite controlar o mundo (ou o que a sociedade de consumo nos diz que é o mundo). Chegamos à porta trancada do quarto, depois de trancar a porta da casa, tendo atravessado a grade do prédio que, trancada, nos alivia, momentaneamente, dos perigos trovejados em nossos ouvidos. Tenha pânico: não reaja a nada. Com a imagem (e a idealização que dela fazemos) estamos salvos e libertos. Ficamos imersos na passividade da contemplação, nos tornando ainda mais isolados uns dos outros.
10. Não criamos nenhum tipo de laço verdadeiramente solidário. Com este sem-número de regras e olhando (para o bem ou para o mal) apenas para o outro, deixamos de ser autores de nosso próprio enredo. E de um enredo que dê sentido à nossa história comunitária como povo e nação.
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