Ela está à frente da Fundação do autor, aberta ao público no mês passado em Lisboa
PILAR DEL RÍO com a Casa dos Bicos, sede da fundação, ao fundo (à direita) e a centenária oliveira transplantada de Azinhaga, aldeia de Saramago; a árvore faz sombra às cinzas do escritor, com quem viveu 22 anos Daniela Martins Gutierrez
LISBOA - A enorme janela do escritório tem uma vista invejável para o Rio Tejo, mas o que realmente prende a atenção de Pilar é a oliveira que fica no passeio. Ela interrompe a conversa para fazer um comentário sobre o grupo que lá embaixo tira fotos ao lado da árvore.
— É assim o tempo todo — diz, cheia de orgulho.
Aquela oliveira quase centenária foi trazida de Azinhaga há um ano por um motivo muito especial: fazer sombra às cinzas de José Saramago. Da aldeia do escritor veio a árvore. De Lanzarote, ilha onde ele e Pilar viveram durante 17 anos, foi trazida a terra. E do romance "Memorial do convento" foi extraída a frase que está gravada na calçada da Rua dos Bacalhoeiros: "Mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia: José Saramago 1922-2010."
No dia 18 de junho de 2011, em uma cerimônia que lembrou o primeiro ano da morte do Nobel português, os restos do escritor foram depositadas em frente à Casa dos Bicos, na Baixa de Lisboa. Nesse prédio de quatro andares e cinco séculos de história funciona a sede da Fundação José Saramago. Ali estão a biblioteca e o acervo pessoal do escritor. O local foi aberto ao público no último dia 13 e servirá como espaço para exposições, lançamento de livros, exibição de filmes e realização de palestras. Mais do que cuidar do legado do Nobel, a fundação presidida pela espanhola Pilar del Río tem por objetivo servir de centro cultural.
Entusiasmo de sobra
Depois da morte do marido a jornalista pediu e obteve a nacionalidade portuguesa, e se mudou a Lisboa para comandar a fundação de perto. No documentário "José e Pilar", dirigido por Miguel Gonçalves Mendes, há uma cena em que Saramago diz que quando morrer quer que suas cinzas estejam embaixo de uma pedra no jardim da casa de Lanzarote, aos pés da esposa, para que ela, quando pensasse nele, depositasse ali uma flor. Os planos mudaram. Pilar conta que pouco antes da morte do escritor eles tiveram uma conversa e ela lhe disse que não pretendia ficar na ilha.
— Ele queria que as cinzas estivessem onde eu estivesse. Eu disse que não ficaria em Lanzarote. "Você fez uma fundação, quem vai tocar a fundação? Eu vou para Lisboa", eu disse para ele. E por isso decidimos trazê-lo para cá.
De seu escritório, no segundo andar da Casa dos Bicos, ela faz o que Saramago lhe pediu que fizesse: dá continuidade a sua obra. Diariamente recebe dezenas de solicitações de financiamento de projetos, pedidos de entrevistas, propostas de parcerias e e-mails de estudantes que querem mostrar suas teses de mestrado e doutorado sobre a obra do Nobel português.
Aos 61 anos, Pilar tem disposição de sobra. Chega cedo à fundação, vai embora tarde e não reclama. Faz tudo com extremo cuidado, paciência e uma praticidade espantosa.
Costuma dizer que não pode se dar ao luxo de ficar "desesperada nem desesperançada" e completa:
— Porque tenho tudo. Inclusive força para combater.
É com essa energia e com muito trabalho que ela administra a saudade de Saramago, com quem foi casada por 22 anos.
— Não sei como será uma morte que chega a destempo. Uma mãe que tem que enterrar um filho, por exemplo. Tem que ser terrível. Agora, vida que chega ao seu término natural... dói muito, muito, muito, há um vazio, uma dor, mas também há uma enorme serenidade, porque são vidas cumpridas. O problema são as não cumpridas. Uma morte com a vida cumprida traz paz — diz ela. — Com o José foi assim. Ele deitou a cabeça para trás e me disse: "Pilar, deixa-me descansar um pouco".
Pilar põe ênfase no fato de que Saramago, mesmo muito debilitado, trabalhou até o fim da vida.
— Há quem diga: no final ele estava muito diminuído. Sim senhor, seu corpo estava doente, mas era lúcido e valente como poucos. Com seu corpo doente ele trabalhava todos os dias, e não era pouco. Trabalhava 12, 14 horas. Sua vida culminou sem decadência, terminou escrevendo "Caim", que é um romance maravilhoso e é um grito. Juntamos todos os jovens do mundo e eles não têm o valor de Saramago, que sabendo que está para morrer escreve a Deus: "Y tu, de que vás?".
A história de José e Pilar começou em 1986 quando ela, por recomendação de uma amiga, leu "Memorial do convento". Ficou fascinada, voltou à livraria e comprou "O ano da morte de Ricardo Reis". Terminado o livro decidiu que tinha que agradecer ao autor. Quando foi a Lisboa, ligou para Saramago, se apresentou e disse que gostaria de conhecê-lo.
— Eu não estava em busca de um amante, por favor. Para mim seria o mesmo se ele fosse um homem ou uma mulher. Já havia feito outras vezes, de agradecer a alguém por ter escrito algo que me tocou — conta ela.
Saramago, em entrevista ao documentarista Miguel Gonçalves Mendes, descrevia assim esse telefonema: "Um dia de junho de 1986 telefona para minha casa em Lisboa, onde eu então vivia, uma senhora que dizia chamar-se Pilar del Río, de profissão jornalista, leitora minha e que queria, uma vez que viajaria a Lisboa, gostaria, se eu tivesse tempo, de conhecer-me. E eu disse que sim senhor".
No dia 14 de junho daquele ano, às quatro horas da tarde (momento congelado pelos relógios da casa de Lanzarote), José Saramago entrou no Hotel Mundial, no centro de Lisboa, à procura da hóspede Pilar del Río, sem ter a menor ideia do que ia acontecer. Perguntou por ela na recepção e se sentou a esperar. "A ver o que aparecia. E apareceu essa pessoa que, enfim, vocês conhecem. Foi para mim uma surpresa muito agradável. Tratava-se de uma mulher muito bonita, como continua a sê-lo", contou na entrevista. Pilar tinha 36 anos e José, 63.
— Ele descreve nosso encontro na "Jangada de pedra" e diz que sentiu a terra tremer — diz ela.
‘Muitas coisas em comum’
No livro, os personagens José Anaiço e Joana Carda se encontram pela primeira vez também na recepção de um hotel. Ele sente como se estivesse sobre um barco no mar, "o chão de tábuas como um convés". Ela, como se ele estivesse a "aproximar-se de muito longe", ainda que fossem apenas "três, quatro passos". E Pilar, não sentiu nada quando viu o José?
— Eu não senti nada, mas eu não sou literata. Ele é. Depois de conversar, sim, eu vi que tinha muitas coisas em comum. Vi que tínhamos demasiado em comum para não continuar aprofundando essa amizade — desvia o olhar e faz uma pausa, parece relembrar essa primeira vez.
Naquele dia conversaram muito, mas não entraram em assuntos pessoais. José ficou sem saber se Pilar tinha alguém, e ela foi embora com a mesma dúvida em relação a ele. Começaram a trocar cartas em que falavam de literatura e política, e a curiosidade foi aumentando.
Até que um dia o português lhe escreveu uma carta que, em suas palavras, era "um modelo de diplomacia sentimental". Dizia que iria a Madri e a Granada e gostaria de, "se as circunstâncias da vida dela permitissem", passar por Sevilla — onde ela morava. Você duvidou por algum segundo em dizer que sim, Pilar?
— Não — diz convicta, e a resposta vem em português (toda a entrevista foi em espanhol, mas há palavras que ela escolhe para dizê-las na língua de Saramago). Fecha um pouco os olhos, faz uma pausa e dá um sorriso discreto. — Ele entrou na minha casa e ficou.
Quero saber de Pilar se o amor de Saramago por ela o fez viver mais. No fim de 2007 o escritor esteve internado por causa de uma pneumonia.
— Ele esteve morto uns instantes e os médicos me disseram já, já. E eu pedi que tentassem mais. Eles queriam entubá-lo e eu disse que não, eu dizia: "Deixa ele respirar, deixa ele respirar". E ele voltou a respirar.
A dedicatória de "Viagem do elefante", livro que Saramago escrevia naquela época, é: "A Pilar, que não deixou que eu morresse". Foi assim?
— Quem o salvou foram os médicos — responde para tirar o dramatismo da pergunta.
Tento argumentar que a história de amor deles é muito bonita, mas sou delicadamente interrompido:
— Insisto, o amor é uma coisa que se pode construir. Que todo mundo pode construir. Acredito que todo ser humano pode fazer sua vida. Saramago escreveu "Levantado do chão", e eu acho que todos podemos nos levantar. Se uma pessoa quer viver uma relação de amor vive. Porque o amor não é o que uma pessoa recebe, é o que põe. E ninguém está impedido de amar.
Saio do prédio acompanhado de Pilar, que assusta um cachorro com a velocidade com que desce a ruela de pedregulho. Brinca com ele, lhe pede desculpas, se diverte sozinha e continua andando rápido. Chega frente à oliveira e comenta:
— Amanhã preciso trazer uma rosa branca. A que eu trouxe ontem levaram, e estas já estão feias.
Terminamos a entrevista e eu proponho acompanhá-la até o carro.
— Não precisa, homem. Eu consigo ir sozinha — diz.
O que parecia uma resposta ríspida se torna carinhosa quando avança até mim e me dá dois beijinhos antes de dizer que se precisar de alguma coisa mais é só lhe escrever. Então vira as costas e caminha sobriamente, como se não usasse salto alto e nem pisasse em um chão irregular de pedras. E me pego concordando com Saramago: é uma mulher extraordinária, dessas que fazem o chão tremer.
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