Henry Sobel deixará o Brasil - circulou dias atrás. Diante da informação ainda restrita, o Estado procurou o rabino afastado da Congregação Israelita Paulista (CIP) em 2007, ao protagonizar um controvertido furto de gravatas numa loja de Palm Beach, nos Estados Unidos. Desde então Sobel deixou de ser a autoridade religiosa máxima da entidade, pediu aposentadoria no que foi atendido e levou o título de "rabino emérito" contornando uma crise que lhe trouxe profunda mágoa.
Por seis anos manteve a justificativa de que o furto fora motivado por desordem psicológica, depressão e efeito de remédios. Até no livro autobiográfico, Um Homem, um Rabino (Ediouro, 2008), com prefácio de Fernando Henrique Cardoso, sustentou a versão: "Para concluir minha recuperação, tenho que reconhecer a existência de um problema de saúde, que se manifestou em momentos de grave tensão". Nesta entrevista exclusiva, Sobel se desmente. Pela primeira vez assume que o furto tem a ver com "uma falha moral minha".
A revelação foi feita dias atrás, de modo manso porém surpreendente, ao longo de uma entrevista de duas horas e meia no apartamento do próprio rabino, no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Antes do gravador ser acionado, Sobel avisou que iria falar de algo pela primeira vez. Algo muito difícil. Havia escrito um longo texto, que consultou em diferentes momentos. E, recorrendo sempre aos fundamentos éticos do judaísmo, admitiu que furtou por fraqueza de caráter, não por debilidade física. "Desde jovem, fui um intolerante comigo. E o autojulgamento sempre foi severo demais. Mas o rabino é humano, portanto, falível."
Conta que amigos próximos ajudaram a montar a versão do desequilíbrio para protegê-lo. Que outros amigos silenciaram. E que uma oposição não o poupou das críticas. Agradece o acolhimento dos brasileiros, que chama de grande público não judeu. "Estranharam o fato. Mas não me julgaram."
Quase aos 70 anos, casado com Amanda e pai de Alisha, filha única, prepara-se para viver em Miami. Iniciará um longo período sabático só interrompido para voltar ao Brasil na época da Copa. "Sou apaixonado por futebol. Meu time, o São Paulo, anda em baixa, mas vibro, vibro... e vibro", revela com o dote de bom pregador, em que a repetição de palavras é recurso infalível e o sotaque americano, marca registrada. Fala da tristeza por não ter sido convidado a se encontrar com o papa Francisco (justo Sobel, que esteve com João Paulo II e Bento XVI, entre tantos líderes religiosos) e acha que sua representatividade vem sendo machucada. Por fim, ao rever sua corajosa atuação pública na morte de Vladimir Herzog, diz sentir o conforto do dever cumprido.
Por que está deixando o Brasil?
Deixe-me dizer que esta deverá ser uma entrevista difícil, com perguntas delicadas que pretendo responder. Fiz anotações que vou consultar, se me permitir. São 43 anos no Brasil. Minha história pessoal e a vida profissional estão muito interligadas. E ligadas ao Brasil. Mas resolvi deixar o País para diminuir o ritmo e preparar a aposentadoria. Passarei um período sabático em Miami. Lá vou me dedicar à leitura, escrever e refletir muito.
E por que Miami?
Primeiro, porque temos um apartamento lá. Segundo, porque a comunidade judaica daquela região é relativamente bem organizada. Em inglês se diz que Miami é gateway, ponto de partida para o mundo - Oriente Médio, Europa, América Latina... bom lugar para estar. Tentei ir para Washington, não consegui viabilizar o projeto. Então, é Miami. Mas voltarei ao Brasil no meio do ano que vem, para ver a Copa do Mundo daqui. Falando sério, vibro com futebol.
O senhor já não está aposentado?
Estou. Comuniquei meu pedido à CIP anos atrás, que foi aceito. Continuei por aqui porque tenho paixão pelo Brasil. Agradeço o País que me proporcionou trabalhar com a comunidade judaica e ter mantido contato com líderes religiosos de outros credos.
Como seria comparar o rabino Sobel dos anos 70, que chegou aqui jovem, num período difícil, e o rabino Sobel hoje, aposentado e querendo refletir?
Hoje sou um rabino machucado. Por motivos políticos. Vou dar um exemplo: minha congregação não me convocou para encontrar o papa Francisco na visita dele ao Brasil. Isso me magoou, afinal de contas, ele é um homem maravilhoso, líder de mais de 1 bilhão de seres humanos. No fundo, a minha representatividade tem sido machucada, algo que construí em 43 anos. Outro rabino foi escolhido para o encontro e eu me curvei perante o destino. Respondi à sua pergunta?
Sim, o senhor diz que hoje a sua representatividade não conta no Brasil.
O rabino argentino Skorka, amigo de Francisco, esteve por aqui, mas não o conheci. Ele mandou o livro que fez com o papa. Li e achei excelente. Alto nível de ambos os lados. Sei que é cedo para falar, mas a modéstia deste papa tem sido tocante. Gosto dos bons olhos dele, das improvisações... No entanto, a congregação achou melhor destacar para o encontro o rabino Michel Schlesinger, que me sucedeu na CIP. Gosto do Michel, pude ajudá-lo a fazer os estudos rabínicos em Israel e sei que tem grande futuro. Mas tenho meu ego para cuidar (risos)... Voltando ao ponto, pode escrever que não estou fugindo do Brasil.
E alguém diria isso?
Não sei, talvez. Aos 70 anos, não tenho motivos para fugir. Falo assim porque houve aquele incidente lastimável das gravatas, em consequência do qual saí da CIP.
Tem sido vítima de alguma forma de perseguição?
Não, isso não. Minha popularidade está intacta e o contato com o meu povão, idem. A criatividade é a mesma. O trabalho na comunidade é o mesmo. Os casamentos, as cerimônias de bar e bat mitzvah, os enterros infelizmente, tudo continua. Até a procura de dinheiro continua, porque aprendi a angariar recursos para a congregação junto a segmentos da economia. Tudo se mantém. O que não se mantém é a representatividade institucional. Isso me negam. Também sei que sou um privilegiado por ter trabalhado tanto tempo na mesma posição, o que é raro nas congregações.
Mas o senhor também deu uma dimensão particular a essa posição.
Acho que sim. Numa época difícil para o Brasil. Hoje a comunidade judaica se posiciona de maneira neutra perante os acontecimentos. Não existe uma definição própria, um rumo no que tange à sua posição perante fatores sociais e o caos da corrupção.
O esvaziamento de representatividade tem a ver com o caso das gravatas?
Por favor, coloque no papel o que trago no meu coração, porque vou falar de algo pela primeira vez. Antes não havia tido coragem nem vontade. Aquele foi um episódio desgastante, cheguei a pedir desculpas diante de câmeras das principais emissoras de TV do Brasil. Também tratei do assunto em livro autobiográfico. Falei em problema de saúde e no uso de um medicamento para dormir, o Rohypnol. O remédio teria me levado a cometer atos impensados. Ontem à noite, às vésperas desta entrevista e com o distanciamento que o tempo proporciona, decidi que não posso mais atribuir o que houve a fatores externos. Para ser e me sentir honesto, admito que cometi um erro.
Está dizendo que o furto não pode ser atribuído ao efeito de remédios, mas a uma falha sua?
Uma falha moral minha. E peço perdão. Veja o que escrevi ontem à noite: "É bom ser perdoado. Quando eu era menino, sempre que cometia um erro, podia contar com a compreensão, a ternura e o perdão dos meus pais. Lembro da sensação de ter um peso tirado do coração, uma gostosa certeza de ser aceito. (...) Quando cresci, foi a minha vez de conceder perdão aos meus pais pelos seus erros e fraquezas, fossem reais ou fruto da minha imaginação. Compreender nossos pais, e perdoá-los por serem menos perfeitos do que gostaríamos, é natural no processo de amadurecimento. Lembro das críticas se abrandando, os ressentimentos se dissolvendo, a consciência do afeto libertando a alma. É bom perdoar". E é muito bom perdoar a si próprio.
Como conseguiu chegar a essa aceitação dos fatos?
Eu era muito intolerante comigo quando me tornei rabino. O autojulgamento sempre foi severo e o sentimento de culpa, duradouro. Finalmente consegui me conscientizar de que o rabino é humano, portanto, falível. O incidente das gravatas é do conhecimento público, não preciso entrar em detalhes aqui... Tento me perdoar, o que não é fácil, porque perdoar não é esquecer. Se fosse, não haveria mérito no perdão.
O senhor passou seis anos nesse sofrimento, endossando uma versão? Afinal, como surgiu a história do remédio?
A palavra "surpresa" aplica-se à pergunta. De início houve a surpresa. Depois uma falta de crença na realidade, de que aquilo pudesse ter acontecido. Amigos procuraram afirmar que houve doença, queriam me proteger. Outros nem tanto. Quero ler mais um trecho sobre o perdão: "É impossível sobreviver se as raças não se perdoarem depois de tanta intolerância e preconceito. É impossível sobreviver se as religiões não perdoarem depois de tanto ódio e perseguições. É impossível sobreviver se as nações não perdoarem depois de tantas guerras e derramamento de sangue. Em todos os momentos e em todas as situações, as pessoas precisam ser capazes de dizer 'volte, eu te perdoo'. Dizer 'eu te amo, vamos tentar novamente'. Porque nunca é tarde demais". Perdoe o meu desabafo, mas há seis anos, todos os dias, lido com essa questão. Acho que posso amadurecer. E não deixar acontecer de novo.
Já acontecera antes na sua vida?
Não.
Foi um ato isolado?
Foi um momento que não sei explicar. A não ser como falha humana.
O senhor fala de um episódio anterior no livro, em que teria sido advertido numa loja, conseguindo pagar a mercadoria. Era parte da versão também?
Era parte da versão.
Nesses anos, teve ajuda psicanalítica?
Procurei um profissional, muito comunicativo e inteligente. Ele me ajudou a escrever o livro. Mas só agora posso assumir o que aconteceu.
Amigos ajudaram, outros, nem tanto. Sentiu-se abandonado?
A maioria das pessoas da comunidade não se manifestou. Hoje acho que muito daquele silêncio acabou sendo uma demonstração de apoio. E houve a oposição que não poupou esforços ao criticar. Já o grande público não judaico foi acolhedor. Achou estranho, mas evitou julgar.
Seu envolvimento com direitos humanos era um foco de tensão com a CIP? O senhor se expunha muito?
Deixe-me dizer que a experiência brasileira tem sido singular para o judeu. A hospitalidade encontrada aqui se converteu na liberdade que ele tanto buscava. Portanto, me parece perfeitamente compreensível que judeus se identifiquem com a luta dos direitos humanos e da justiça social neste País. Mas, respondendo à pergunta, não era fácil distinguir entre as críticas ideológicas e as críticas políticas a mim. Como qualquer líder público, alimentei adversários que procuravam motivo para a sua crítica. O caso das gravatas serviu para isso. Não digo que eu era o rabino mais popular, mas era certamente o mais ativo.
Anos atrás, o senhor dividiu a cena pública com líderes religiosos de peso, que o endossavam, como dom Paulo Evaristo Arns, dom Helder Câmara, o reverendo Jaime Wright...
....e agora dom Claudio Hummes. Tenho dom Claudio! Acho que posso contar esta passagem: sentindo a minha frustração de não poder ir ao papa, ele tentou, através do Vaticano, corrigir um problema político criado aqui. Não havia mais tempo, mas ele tentou. Sou grato a ele.
Dom Claudio ocupou o lugar de dom Paulo na sua vida?
Dom Paulo está afastado. Temos contatos esporádicos, especialmente quando ligo para ele. Mas dom Paulo não quer mais se inserir no dia a dia do Brasil. Meu interlocutor na Igreja Católica tem sido dom Claudio. É um homem íntegro, sensível, cauteloso em tudo o que faz. E seu conselho é confiável.
Este ano a família Herzog recebeu o atestado de óbito correto do Vlado - morto sob tortura e não por suicídio. Como recebeu a notícia?
Com muita alegria, porque Vlado merecia esse reconhecimento. E falta buscar outros Vlados cujos direitos foram violados, Vlados humilhados em vida e depois da vida. O trabalho pelos direitos humanos está apenas começando no Brasil. Temos um longo caminho a percorrer. E, enquanto for rabino, algo que pretendo ser até o fim da minha vida, assumo o compromisso de lutar por isso. A morte de Vladimir Herzog não terá sido em vão.
Quem o levou a decidir que Vlado fosse enterrado na área central do cemitério israelita, e não na área reservada aos suicidas, o que corroboraria a farsa da ditadura?
Dom Paulo. E foi dele que recebi o sábio conselho de organizar o culto na catedral. Quanto ao meu gesto: num conflito de forças opostas, é preciso avaliar bem o certo e o errado. Decidi apoiar os jornalistas, liderados por Audálio Dantas, seguir o conselho de dom Paulo e me manter ao lado da família Herzog. Porque eles falavam a verdade.
A que forças o senhor se refere?
De um lado, tinha a Chevra Kadisha, comitê de voluntários da comunidade encarregado de organizar o funeral conforme o rito judaico. De outro, tinha a família do Vlado, os jornalistas, dom Paulo. Vi que a Chevra Kadisha não estava representando a verdade naquele momento. Que tentou minimizar o ocorrido por cautela, medo ou falta de alternativa. Então não decidi entre duas verdades, porque isso não existe. O que existe é uma verdade acima de outra. Procurei o que era certo e Deus resolveria o resto. Isso significa ser judeu consciente. Assumir, agir, lutar se necessário. E confiar. Confiar.
Qual é o balanço que o senhor faz desse capítulo na sua vida?
Tenho vivido bem com a minha consciência. E passei a agir não só pelo Vlado, mas por outros torturados. A causa transcendeu. Naquele momento ganhei adversários, sim, e uma recompensa: a dos jovens judeus que me acompanharam ao culto. Eles andavam comigo na catedral. Éramos um time, jogando juntos. Hoje os jovens não estão tão comprometidos. Enfim, esses 43 anos foram de aprendizagem. Acertei e errei muito. Agora vou dedicar tempo a mim. O perdão vai ocupar boa parte dos meus dias.