O novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Ayres Britto, quer realizar, no máximo até amanhã, uma reunião interna com seus pares para tentar pacificar o tribunal. A crise se instalou em razão de uma entrevista em que Cezar Peluso afirmou que Joaquim Barbosa é inseguro, tecendo algumas considerações um tanto irônicas sobre problemas de saúde do outro, que o levaram a faltar bastante. Em resposta, Barbosa desqualificou seu crítico com uma saraivada impressionante de adjetivos — entre os quais “brega e caipira”. Mas isso ainda parecia coisa de normalistas. Ultrapassou a linha do tolerável ao acusar Peluso de manipular decisões tomadas pela corte quando estava na Presidência. Aí a coisa é pesada institucionalmente!
Fosse isso verdade — felizmente, não é!!! —, as decisões a que ele se refere seriam ilegítimas. Barbosa, que vai presidir o Supremo daqui a oito meses, tem de saber que o tribunal é o remédio que remedeia os remédios, como dizia Padre Vieira. Entendeu, ministro? Depois de vocês, não há mais nada. Só o golpe de estado… Se o país não pode confiar na sua corte suprema, apelará a quem? Deus, a gente já viu, anda em baixa no Supremo, não é mesmo? Depois das lições todas que tivemos de laicismo pedestre na votação sobre o aborto de anencéfalos, acredito que há ministro achando que é Deus…
Ideologia
O tribunal tem decisões difíceis pela frente, que mexem com valores, grupos organizados de pressão, ideologias. Os debates podem ser acalorados. Qual vai ser o padrão dos ministros? O da ofensa, do xingamento, do dedo no olho? Com alguma frequência, e notei isso mais de uma vez nas considerações sobre aborto, há ministros julgando mais os valores de seus pares do que propriamente as causas. Ouvem-se, se não com estas palavras, mas com este sentido, a censura aos “conservadores”, como se “ser progressista” fossem um dever. Pior ainda: como se “conservadorismo” e “progressismo” fossem conteúdos fechados e estanques, que herdamos do Mundo das Ideias. Querem um exemplo? A expulsão dos arrozeiros da Reserva Raposa Serra do Sol foi “progressista” ou “conservadora”? Presumo a resposta que seria dada por muita gente. Pois bem: o que há de progressista em dar um tombo da produção agrícola de um estado e enviar brancos e índios expulsos da reserva para favelas em Boa Vista? A poesia indianista de Ayres Britto, no entanto — aquele que se diz pirilampo, não camaleão — foi preservada…
Na quarta-feira, DEPOIS DE MAIS DE 11 ANOS!!!, o tribunal começou a julgar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade movida em 2003 pelo então PFL, hoje DEM, contra o decreto nº 4.887, que trata da demarcação de terras de comunidades quilombolas. O decreto regulamenta o Artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição. Muito bem! Um decreto pode disciplinar uma lei, mas não um artigo da Constituição, o que é matéria para o Congresso. Foi o que apontou, com correção, o partido. Mais: aquele texto do primeiro ano do governo do Apedeuta, vejam que mimo, estabelece como critério eficiente para que se defina a legitimidade do pleito a simples autodeclaração. O que está na Constituição? Que seriam reconhecidas como áreas dos quilombolas aquelas que, na data da promulgação, estivessem ocupadas por eles. Muito bem!
Mas como resolver a questão no caso de haver conflito de propriedade e dúvida sobre a legitimidade do pleito? Ora, basta a declaração dos… interessados, com o endosso de entidades militantes ligadas à causa! Não é fenomenal? Com base nesse critério, mais de 100 títulos de propriedade já foram emitidos. E, obviamente, explodiram as reivindicações para a solicitação de reconhecimento de novas áreas. E quem é quilombola? Segundo o decreto, é quilombola quem se diz quilombola!!! Não se exige nem mesmo um laudo antropológico. Reproduzo trecho do decreto (íntegra aqui): Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
§ 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.
§ 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.
§ 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.
Art. 3o Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Voltei
Muito bem… O relator do caso foi o ministro Cezar Peluso, que acolheu os argumentos do DEM — à luz da lei, como rejeitá-los? —, deixando claro, no entanto, que os títulos já emitidos não podem ser contestados. O voto seguinte era da ministra Rosa Weber, a mais nova integrante do tribunal, que pediu vista. Pois é… Apesar do conteúdo verdadeiramente escandaloso do decreto, que faz do beneficiário da demanda o seu próprio juiz, sinto certo cheiro de populismo no ar. Temo que alguns ministros, como diria Britto, tentem julgar mais com o “sentimento” do que com o “pensamento” — ou não foi exatamente isso o que se fez em Raposa Serra do Sol?
Em breve, o caso da área dos pataxós, na Bahia — eles já invadiram 68 fazendas —, será julgado. Farei ainda um texto específico a respeito. A chance de que os produtores rurais (essa gente tão detestada pelos “progressistas”) levem a pior é enorme! Afinal, eles têm de pagar um preço por formarem a categoria responsável pela estabilidade da economia brasileira, não é? E olhem que nem contam com os incentivos protecionistas que a dupla Mantega-Dilma dá à indústria… No caso da demarcação das terras indígenas — que já ocupam 14% do território brasileiro! —, fazem-se laudos antropológicos, sim. Costumam ser mais falsos do que notas de R$ 3. Estamos lidando com militância política, não com fatos.
Sim, eu temo por esse Supremo excessivamente sensível não, ATENÇÃO PARA ISTO!!!, exatamente à tal voz rouca das ruas, mas à voz daquela parcela das ruas que tem um determinado viés ideológico. INSISTO: O PROBLEMA DO SUPREMO NÃO É SE VERGAR AO QUE PENSA A MAIORIA. Se assim fosse, já seria ruim no caso de não se estar cumprindo o que está escrito. O busílis é outro: o tribunal está se mostrando excessivamente contaminado POR IDEOLOGIA. De esquerda, sim, senhores! Fosse só ecoar o que quer a maioria dos brasileiros, seria, por exemplo, hostil ao aborto. E não é, certo? O voto de boa parte dos ministros no caso dos ditos anencéfalos serve para aborto qualquer, sem especificação.
E isso é, sim, eco de algo que vem de fora — da minoria organizada. E o mesmo se diga destas outras causas em trânsito: quilombolas, terras indígenas, cotas raciais nas universidades… Temos ouvido, não raro, a defesa de que os ministros têm de ser sensíveis para às demandas da sociedade. Chama-se, então, “sociedade” a expressão das vozes das minorias barulhentas, nunca da maioria silenciosa. Mas vá lá: não contrariassem certas decisões a letra explícita da lei, tudo iria bem! Ocorre que, não raro, avalio, e não sou o único, que a tal letra tem sido desrespeitada.
Caminhando para o encerramento
Os ministros têm de se reunir, sim! O espetáculo protagonizado é deprimente. Mas não sou muito otimista, não! O clima meio conflagrado no Supremo reflete, já escrevi aqui, certo rebaixamento institucional a que tudo está submetido. É claro que os ministros não são robôs, programados para recitar a lei. Mas entendo que a um juiz do Supremo não cabe, sob nenhuma hipótese, tornar ambíguo o que é claro, incerto o que é certo, relativo o que é absoluto. Ao contrário, há de achar, quando é o caso, o claro no ambíguo, o certo no incerto, o absoluto no relativo — afinal, a sociedade é dinâmica e é confrontada, permanentemente, com realidades não contempladas nas leis. Nesse caso, resta o caminho da interpretação, da analogia, da semelhança — até, ao menos, que o Congresso se encarregue de votar uma lei específica.
Os conflitos hoje em curso nascem de certa disposição justiceira de alguns; de certa compulsão por “fazer justiça com a própria toga”, como costumo dizer — “já que o Congresso não age”, sustentam alguns. Ainda que assim fosse, ninguém conferiu a ministros do Supremo o papel de legisladores ou de reformadores do Código Penal, por exemplo. Como não conferiu aos policiais o papel de juízes — e, por isso, eles não devem decidir a sorte de um preso argumentando que “a Justiça não age”…
Vou dizer algo que dará pano pra manga, sei disso, e certamente demandará outras tertúlias. Mas vamos lá. A composição do Supremo conta muito para sua maior ou menos qualidade. Mas há também fatores circunstancias. Depois que as sessões começaram a ser televisionadas — tudo em nome da transparência —, exacerbou-se certo vedetismo. Temo que algumas pessoas atuem para as câmeras, mais ou menos como aqueles rapazes e aquelas moças do Big Brother. O binômio “representação-trasparência” é necessariamente antitético.
E agora para encerrar mesmo
Se os dois ministros que se ofenderam vão ou não pedir desculpas publicamente, eis um problema deles. Meu ponto é outro: é imperioso que Joaquim Barbosa retire o que disse sobre a manipulação de resultados. Enquanto persistir sem reparo a acusação do homem que vai presidir o tribunal daqui a oito meses, quem está em risco é a segurança jurídica do país.
Reitero: o STF é o remédio que remedeia os remédios. Depois dele, ministro Barbosa, só o golpe de estado!
E aí?