Comissão especial na Câmara dá aval a projeto de lei que expôs racha entre ambientalistas e ruralistas. Oposição tacha proposta de "pacote do veneno", enquanto defensores chamam medida de "Lei do Alimento Mais Seguro".
Fabricantes de agrotóxicos, como Syngenta e Bayer, apoiam mudança na lei de agrotóxicos brasileira
Em meio à Copa do Mundo de Futebol e a portas fechadas, a comissão especial que analisa uma nova lei de agrotóxicos na Câmara dos Deputados aprovou nesta segunda-feira (25/06) o parecer do relator, o deputado Luiz Nishimori (PR-PR), favorável a uma mudança na legislação. Dezoito parlamentares votaram a favor do texto, e nove, contra.
O debate expõe o crescente racha entre ambientalistas e ruralistas, uma das muitas rivalidades que marcam o polarizado cenário político e social brasileiro. Para uns, a Câmara debate um "pacote do veneno", para outros, o país está diante da "Lei do Alimento Mais Seguro".
A discussão se dá em torno de quem pode autorizar o uso de agrotóxicos no Brasil. Atualmente, o Ministério da Agricultura é responsável por registrar esses produtos, mas apenas se tiver o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que avalia os efeitos tóxicos sobre a saúde humana, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), responsável por verificar o risco ambiental.
Pelo projeto de lei (PL) 6299/2002, de autoria do então senador e atual ministro da Agricultura, Blairo Maggi, junto com outros 29 textos apensados a ele, o Ministério da Agricultura deveria passar a avalizar sozinho o registro dos agrotóxicos.
Em seu parecer, apresentado na semana passada, o relator do projeto, que é favorável ao PL, afirmou que Anvisa e Ibama devem apenas "analisar e, quando couber, homologar os pareceres técnicos apresentados nos pleitos de registro".
A oposição vinha conseguindo adiar a votação com manobras regimentais, mas acabou sendo derrotada com a aprovação do texto pela comissão especial nesta segunda-feira. A proposta segue agora para o plenário da Câmara.
Lentidão e burocracia
A mudança na lei é defendida pela bancada ruralista, nome informal da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), e conta também com o apoio de empresas fabricantes de agrotóxicos. Entre elas estão a Syngenta, comprada pela chinesa ChemChina, a holding DowDuPont, e as alemãs Basf e Bayer – que acaba de aquirir a Monsanto –, cujos resultados mundiais são significativamente impactados por sua atuação no Brasil.
Para os ruralistas, o texto traz mudanças capazes de "modernizar" a forma como o país lida com os agrotóxicos. O ponto central de reclamação é a burocracia envolvendo o registro dessas substâncias.
Eles afirmam que não há uma fila única para o registro, mas três diferentes, uma em cada órgão, e que há muita lentidão. O processo, de fato, é longo e pode durar mais de cinco anos, em grande medida pela falta de pessoal tanto na Anvisa quanto no Ibama.
Vulnerabilidade à pressão política
Os opositores ao texto protestaram de forma veemente, destacando que o Ministério da Agricultura está muito mais propenso a sofrer pressões políticas do que Anvisa e Ibama. Lembraram ainda que há pouca fiscalização a respeito do uso de agrotóxicos e que a lei atual seria uma das poucas proteções para a sociedade.
Uma das principais preocupações com o texto é a possibilidade de agrotóxicos ainda não analisados pelas autoridades brasileiras receberem uma autorização de uso provisória.
Isso ocorreria caso o processo burocrático leve mais de 24 meses, e o produto em questão tenha sido autorizado por pelo menos três países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que tem uma maioria de seus membros formada por países desenvolvidos. Essa cláusula de "proteção" preocupa os setores contrários ao projeto.
"A OCDE congrega os países desenvolvidos, mas inclui também México, Turquia e Chile, que não são exatamente bons exemplos", afirma Larissa Mies Bombardi, professora e pesquisadora do Laboratório de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ela, esses países têm legislações a respeito de agrotóxicos muito mais permissivas que as da Europa ou do Japão, por exemplo.
A ideia de colocar na lei o registro provisório de agrotóxicos veio de um episódio ocorrido há cinco anos. Em 2013, uma lagarta chamada Helicoverpa armígera, cuja entrada no Brasil ainda não foi explicada, dizimou plantações de soja, feijão, milho e algodão em diversos estados, causando prejuízos bilionários.
O Benzoato de Emamectina, agrotóxico que poderia conter a praga, havia sido barrado pela Anvisa em 2010, por ser considerado "extremamente tóxico", mas desde então fora liberado em países como Japão e Austrália e também na União Europeia (UE).
Diante da situação, que atingiu em particular a Bahia, o então governador do estado, Jaques Wagner (PT), recorreu à presidente Dilma Rousseff (PT) e conseguiu a liberação provisória do produto. Em 2017, a Anvisa concluiu a avaliação sobre o benzoato e liberou seu uso controlado.
Abismo entre Brasil e Europa
Em 2017, Bombardi publicou um estudo mostrando que 30% dos agrotóxicos permitidos no Brasil não têm mais registro aprovado na União Europeia UE, incluindo dois dos dez mais vendidos. Além disso, sua pesquisa mostrou as diferenças entre os limites de resíduos de agrotóxicos permitidos em alimentos e na água nos dois locais.
"Há um abismo entre a realidade do Brasil e da UE", diz Bombardi. "Nós autorizamos, por exemplo, um resíduo de malationa, inseticida do feijão, que é 400 vezes maior que o autorizado pela UE", afirma.
Com base nessa realidade, a professora da USP diz ver com preocupação um dos dispositivos previstos no relatório de Nishimori. Trata-se de uma mudança no parágrafo sexto da lei dos agrotóxicos. Atualmente, a legislação proíbe o registro de substâncias "que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas", ou seja, capazes de causar má formação de fetos, câncer ou mutações genéticas.
O projeto de lei prevê, entretanto, que só sejam proibidas substâncias que apresentem "risco inaceitável" para a saúde humana "no que concerne teratogênese, carcinogênese e mutagênese".
"Essa expressão, 'risco inaceitável', cria na minha perspectiva uma janela jurídica que abre e não fecha", afirma Bombardi. "Como você vai discutir o que é aceitável ou não do ponto de vista de câncer e má formação de fetos? O texto rasga a ideia de princípio da precaução", conclui.
Agrotóxicos versus botóx
O setor produtivo rebate as argumentações e diz que a situação atual é ruim não apenas para seus negócios, mas também para o meio ambiente.
"Os produtores brasileiros estão usando os mesmos produtos, as pragas vão se tornando resistentes a eles e a eficiência vai caindo", afirma Fabrício Rosa, diretor-executivo da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja). "Se a fila de registro andasse mais rapidamente, poderíamos estar usando um produto mais eficiente e menos tóxico", afirma.
A lentidão da burocracia não é o único fator negativo no cenário atual, diz Rosa. Houve, segundo ele, "gestores ideológicos" na Anvisa, contrários a qualquer tipo de agrotóxico, com pensamento semelhante ao de "ONGs de esquerda que atuam contra o agronegócio brasileiro".
A atuação dessas pessoas, diz o dirigente da Aprosoja, seria favorecida por uma lei que é prejudicial ao agronegócio por banir automaticamente produtos que possam provocar câncer ou má formação de fetos. Segundo ele, o mesmo não acontece em outros setores.
Rosa usa como exemplos o botóx – uma toxina produzida pela mesma bactéria que causa o botulismo – e a talidomida, que nos anos 1950 e 1960 provocou más-formações graves em mais de 10 mil fetos em todo o mundo. O primeiro, quando altamente diluído, é comumente utilizado em tratamos estéticos. A segunda foi banida em muitos lugares, mas no Brasil é indicada para tratar hanseníase, ainda que sua prescrição a mulheres grávidas seja proibida.
Opção orgânica
Apesar do acirramento dos ânimos na Câmara, há um meio-termo capaz de unir os dois lados na busca por uma alimentação menos sujeita aos agrotóxicos.
"Hoje existem muitos produtos orgânicos ou minerais, por exemplo, que, associados aos agrotóxicos, diminuem muito a necessidade desses agroquímicos, que não podem ser totalmente eliminados", afirma Rui Daher, criador e consultor da Biocampo Desenvolvimento Agrícola, baseada em São Paulo.
Sua empresa é uma das centenas dedicadas a explorar soluções orgânicas de baixo impacto ambiental. Há exemplos disso – como na produção de frutas no Vale do Rio São Francisco e também no combate à lagarta que afetou a Bahia em 2013 – mas falta uma diretriz governamental para ampliar a prática, diz Daher. Sem isso, prevalece a força das empresas produtoras de agrotóxicos.
"Na medida em que o Brasil é um dos principais consumidores de agrotóxicos do mundo, todas as multinacionais têm bases aqui e, com grande poder de divulgação, tentam massificar o uso, às vezes recomendando doses exageradas" afirma. "Precisaríamos de um governo que por um lado regulamente e fiscalize os agrotóxicos de forma rígida e, por outro, dê apoio técnico para as soluções de menor impacto."
Além de reduzir a quantidades de químicos nos produtos vendidos aos consumidores, isso poderia diminuir os custos para os produtores, uma vez que os agrotóxicos são importados e cotados em dólar. De acordo com Rosa, da Aprosoja, os agroquímicos representam o maior peso no custo de produção do agronegócio brasileiro atualmente.