Voltei de viagem. Como é bom voltar de viagem.
Trocaram as maçanetas da casa na minha ausência. As antigas rangiam, saíam na mão, pulavam longe, ejetadas num simples abrir de porta. Com essas, passeio pelos cômodos, entro e saio só para testar o engenho. A humanidade caminhou muito, basta comparar as maçanetas de hoje com as de outrora.
Três milhões de peregrinos lotavam a praia da Copacabana para ver o Santo Padre e eu agradecida às maçanetas. Deus perdoa. É a carne.
No estrangeiro, ouvi relatos sobre as barricadas do Leblon. Terminei de ler "Os Miseráveis" pouco antes de embarcar, a palavra barricada me remeteu ao pivete Gavroche, a Marius e Javert; mas eu desconhecia o rosto dos incendiários do Leblon.
Cabral abusou do direito de ir e vir de helicóptero, da intimidade com o setor privado, houve descontrole da polícia nos enfrentamentos com os manifestantes, além de acasos e tragédias que levaram à vigília eterna de sua residência. Como se não bastasse, o desaparecimento do pedreiro Amarildo veio agravar o quadro de rejeição.
Mas foi sob o comando de Cabral que José Mariano Beltrame implantou uma estratégia de reocupação de vastas áreas dominadas pelo tráfico no Rio de Janeiro. Algo impensável, desde os tempos de Brizola. A atitude lhe valeu uma reeleição folgada.
A assumida arrogância pela esmagadora vitória, somada aos desvios já citados, contribuiu para o caos armado do Leblon. Mas surpreende que "Fora Cabral" vire jargão nas reivindicações da capital paulista.
Há décadas, a riqueza exponencial tornou São Paulo indiferente às mazelas políticas da Guanabara. E elas não foram poucas. Jamais presenciei um "Fora Garotinho", "Rosinha" ou "Brizola" no planalto paulista. O que acontece na Bahia, em Pernambuco, Minas e Goiás tem mais relevância para São Paulo do que as agruras da faixa de Gaza do vizinho.
De repente, "Fora Cabral" vira slogan na garoa. Quem carrega o andor? É impressão minha ou houve uma mudança radical no perfil das manifestações?
As novas mídias viabilizaram a insurreição súbita das massas. Agora, a política ajusta os métodos, criando partidos de Anonymous a serviço, precisa saber de quem. Está difícil distinguir o que é espontâneo do que é orquestrado.
Na primeira vez que vi na televisão o nome de Sérgio Cabral surgir ao lado do de Geraldo Alckmin, esperei pelo esquadrão anti-Haddad, mas ele não apareceu. Estranhei. Ninguém vai pedir o pescoço do prefeito?
Ainda presa ao apartidarismo das passeatas de julho, achei que o repúdio amplo, geral e irrestrito continuaria vigorando. No lugar de Renan Calheiros, um senador da República nacionalmente chamuscado, reluzia, agora, o nome de Sérgio Cabral. E Haddad, que, se não me engano, figurou nas primeiras revoltas, estava com a cabeça a salvo.
Quem afia a guilhotina?
Sérgio Cabral foi o melhor governador que o Rio elegeu em décadas --o que não é muito, quando se pensa nos anteriores, mas foi um avanço. Hoje, um ano antes de encerrar o segundo mandato, enfrenta a danação bíblica pela soberba e a usura.
O revelador encontro que travou com o papa daria uma pantomima medieval. A Virtude e o Poder, algo assim.
O voto de simplicidade de Francisco se opõe à idolatria do dinheiro, pregada nos quatro cantos do planeta, inclusive no Vaticano. Há santos na Cúria, afirma o papa, e prova que há, sendo.
Francisco foi eleito em meio a tormentas internas e externas da igreja, em uma Europa em recessão desde 2008. Como poucos, soube, através de ações práticas, traçar uma conduta moral para os que detêm o poder em tempos de crise.
Aqui, e especialmente na Guanabara, vivia-se a euforia da promessa do capital. Trocávamos as maçanetas, os carros, as geladeiras, construíamos estádios. A percepção do retrocesso econômico aconteceu antes do previsto na população e flagrou os governantes ajoelhados aos pés do bezerro de ouro.
Cabral é a Cúria que Francisco pretende reformar. Mesmo ungido, o governador deverá arder nesse inferno por, pelo menos, mais um ano, ou até que outro venha assumir o papel de Judas. Enquanto isso, Garotinho sobe nas pesquisas de intenção de voto.
Fernanda Torres é atriz e colunista da Folha desde 2010. Escreve aos sábados, a cada duas semanas, na versão impressa do caderno "Ilustrada".