quarta-feira 18 2015

Alexandre Baldy: "Lula tem de comparecer à CPI do BNDES"

Sub-relator da CPI do BNDES diz acreditar que Lula age em favor de empresas que têm obras financiadas pelo banco público de fomento


THIAGO BRONZATTO, COM ANA CLARA COSTA E ALANA RIZZO
17/10/2015 - 10h42 - Atualizado 17/10/2015 11h17

O sub-relator da CPI do BNDESdeputado Alexandre Baldy (PSDB-GO), tem cercado o ex-presidente Lula. Autor de requerimentos que pedem a convocação do líder petista, Baldy acredita que Lula age em favor das empresas no exterior que têm obras financiadas pelo BNDES. “Considero fundamental para a sobrevivência da CPI que o ex-presidente Lula compareça à comissão”, afirma.
INSISTENTE O deputado Alexandre Baldy.  Ele quer levar Lula à CPI (Foto: Alexssandro Loyola)
ÉPOCA – Por que o senhor acha que Lula deve ir à CPI do BNDES?
Alexandre Baldy –
 Eu acredito que uma das diretrizes mais importantes da CPI é a investigação de tráfico de influência em torno do BNDES. É importante entendermos quais foram as empresas privilegiadas e por que se tornaram preferidas pelo banco. Isso me leva a crer que o ex-presidente foi o responsável pela escolha de quem seriam os mais beneficiados pelos empréstimos do BNDES. Por essa razão, eu considero fundamental que Lula compareça à comissão. Quero que ele esclareça por que o banco financiou obras em tantos países que têm atos e deliberações extremamente protegidos.
ÉPOCA – O senhor acha que há uma blindagem do ex-presidente Lula nas CPIs do BNDES e da Petrobras?
Baldy –
 Coloquei em votação um requerimento de convocação do ex-
presidente Lula, mas não foi pautado. Depois, coloquei um requerimento na sessão de extrapauta, pedindo novamente a convocação do ex-presidente Lula. Mas fui derrotado no plenário. Consegui 11 votos favoráveis e 16 contrários. Entendo que os deputados contrários estejam blindando Lula para que ele não sofra um desgaste público. Mas ele precisa dar uma satisfação para a população brasileira.
ÉPOCA – As empresas que contrataram o ex-presidente Lula para dar palestras no exterior também devem ser investigadas pela CPI?
Baldy –
 Queremos entender por que essas empresas foram escolhidas e se houve tráfico de influência. As empresas obviamente serão investigadas. Para que elas fossem escolhidas, certamente houve um dedo que foi colocado para que os recursos chegassem às mãos delas. O ex-presidente viajou para vários países onde as empreiteiras têm obras financiadas pelo BNDES. Isso é um fato curioso e merece ser investigado também.
ÉPOCA – E de quem é essa influência, em sua opinião?
Baldy –
 Do ex-presidente Lula.

A reportagem obteve arquivos sigilosos em que burocratas descrevem as condições camaradas dos empréstimos do BNDES à empreiteira

CRIATIVOS Lula em visita a Raúl Castro, em 2014. De uma reunião de Lula com a Odebrecht, saíram ideias para obter novos financiamentos (Foto:  Instituto Lula)

No dia 31 de maio de 2011, meses após deixar o Palácio do Planalto, o petista Luiz Inácio Lula da Silva desembarcou em Cuba pela primeira vez como ex-presidente, ao lado de José Dirceu. O presidente Raúl Castro, autoridade máxima da ditadura cubanadesde que seu irmão Fidel vergara-se à velhice, recebeu Lula efusivamente. O ex-presidente estava entre companheiros. Em seus dois mandatos, Lula, com ajuda de Dirceu, fizera de tudo para aproximar o Brasil de Cuba – um esforço diplomático e, sobretudo, comercial. Com dinheiro público do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, o Brasil passara a investir centenas de milhões de dólares nas obras do Porto de Mariel, tocadas pela Odebrecht. Um mês antes da visita, Lula começara a receber dinheiro da empreiteira para dar palestras – e apenas palestras, segundo mantém até hoje.

Naquele dia, porém, Lula pousava em Havana não somente como ex-presidente. Pousava como lobista informal da Odebrecht. Pousava como o único homem que detinha aquilo que a empreiteira brasileira mais precisava naquele momento: acesso privilegiado tanto ao governo de sua sucessora, a presidente Dilma Rousseff, quanto no governo dos irmãos Castro. Somente o uso desse acesso poderia assegurar os lucrativos negócios da Odebrecht em Cuba. Para que o dinheiro do BNDES continuasse irrigando as obras da empreiteira, era preciso mover as canetas certas no Brasil e em Cuba.

A visita de Lula aos irmãos Castro, naquele dia 31 de maio de 2011, é de conhecimento público. O que eles conversaram, não – e, se dependesse do governo de Dilma Rousseff, permaneceria em sigilo até 2029. Nas últimas semanas, contudo, ÉPOCA investigou os bastidores da atuação de Lula como lobista da Odebrecht em Havana, o país em que a empreiteira faturou US$ 898 milhões, o correspondente a 98% dos financiamentos do BNDES em Cuba. A reportagem obteve telegramas secretos do Itamaraty, cujos diplomatas acompanhavam boa parte das conversas reservadas do ex-presidente em Havana, e documentos confidenciais do governo brasileiro, em que burocratas descrevem as condições camaradas dos empréstimos do BNDES às obras da Odebrecht em Cuba. A papelada, e entrevistas reservadas com fontes envolvidas, confirma que, sim, Lula intermediou negócios para a Odebrecht em Cuba. E demonstra, em detalhes, como Lula fez isso: usava até o nome da presidente Dilma. Chegava a discutir, em reuniões com executivos da Odebrecht e Raúl Castro, minúcias dos projetos da empreiteira em Cuba, como os tipos de garantia que poderiam ser aceitas pelo BNDES para investir nas obras.

Parte expressiva dos documentos obtidos com exclusividade por ÉPOCA foi classificada como secreta pelo governo Dilma. Isso significa que só viriam a público em 15 anos. A maioria deles, porém, foi entregue ao Ministério Público Federal, em inquéritos em que se apuram irregularidades nos financiamentos do BNDES às obras em Mariel. Num outro inquérito, revelado por ÉPOCA em abril, Lula é investigado pelos procuradores pela suspeita de ter praticado o crime de tráfico de influência internacional (Artigos 332 e 337 do Código Penal), ao usar seu prestígio para unir BNDES, governos amigos na América Latina e na África e projetos de interesse da Odebrecht. Sempre que Lula se encontrava com um presidente amigo, a Odebrecht obtinha mais dinheiro do BNDES para obras contratadas pelo governo visitado pelo petista. O MPF investiga se a sincronia de pagamentos é coincidência – ou obra da influência de Lula. Na ocasião, por meio do presidente do Instituto Lula, Paulo Okamotto, o ex-presidente negou que suas viagens fossem lobby em favor da Odebrecht e que prestasse consultoria à empresa. Segundo Lula, suas palestras tinham como objetivo “cooperar para o desenvolvimento da África e apoiar a integração latino-americana”.
Excepcionalidades camaradas

A partir daquele 31 de maio de 2011, Lula passava a resolver fora da Presidência o que começara nela. A zona portuária de Mariel ganhou vida graças a um acordo de cooperação comercial assinado em janeiro de 2008 entre Brasil e Cuba – uma decisão estratégica tomada por Lula, quando ainda era presidente. Combinou-se que o BNDES colocaria à disposição dos irmãos Castro cerca de US$ 600 milhões para financiar projetos em Cuba, entre 2008 e 2011. A Odebrecht foi escolhida pelo governo cubano para construir o complexo portuário, a principal obra da Ilha.

Embora o BNDES concedesse pequenos financiamentos a projetos em Cuba desde a década de 1990, viabilizar uma operação dessa envergadura seria difícil. Cuba, uma economia fechada, não tinha crédito no mercado internacional e já dera calotes na China e na Rússia, entre outros. Tratava-se de um investimento muito arriscado. Mas a decisão política já estava tomada. Montou-se uma operação financeira atípica. Há dois meses, após muita pressão pública, o BNDES finalmente divulgou algumas das condições camaradas do financiamento: taxas generosas de juros e prazo em dobro para quitar a dívida.
 
NEGÓCIO Porto de Mariel, em Cuba, em 2015. O BNDES financiou a obra em condições atípicas (Foto: Desmond Boylan/AP Photo)
Recentemente, ÉPOCA obteve documentos que integram uma investigação da Polícia Federal e do Ministério Público no Rio de Janeiro, que revelam pela primeira vez a natureza das garantias oferecidas por Cuba para as obras de Mariel – e aceitas pelo governo brasileiro (leia na página 36). Percebe-se por que o governo não as divulgou, mesmo sob pressão. As garantias são recebíveis da indústria tabagista cubana. Isso significa que, em caso de calote de Cuba, o Brasil levaria fumo. Teria de vender s charutos cubanos para cobrir o rombo. Estima-se que o governo cubano fature cerca de US$ 400 milhões por ano com as vendas de charutos – abaixo, portanto, do total desembolsado pelo BNDES para viabilizar a construção do Porto de Mariel, cujo custo chegou a US$ 682 milhões. Houve, ainda, outras duas exceções concedidas aos irmãos Castro: o governo brasileiro assumiria 100% dos riscos políticos e extraordinários do empréstimo; e o dinheiro do BNDES seria depositado no banco estatal cubano, em vez de ficar alocado numa conta no exterior, como é o usual em transações desse tipo.

Documentos inéditos do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, o MDIC, ao qual o BNDES se subordina, revelam que essas cláusulas eram tratadas oficialmente em reuniões como “excepcionalidades”. Numa das reuniões do grupo do governo que aprovava a liberação do dinheiro às obras da Odebrecht, mencionou-se que uma grande seguradora teria suspendido a garantia para as importações de Cuba por atraso nos pagamentos. Apesar do risco, a liberação dos recursos para Cuba e, consequentemente, para a Odebrecht era aprovada ano após ano. Quando ainda era ministro do Desenvolvimento, o petista Fernando Pimentel mandou classificar os documentos do projeto Mariel – e suas “excepcionalidades” – como secretos. Há três meses, o governo revogou essa decisão.
Documentos secretos mostram como Lula intermediou os negócios secretos da Odebrecht em Cuba  (Foto: Reprodução)
A amiga de Cuba

Quando Lula se encontrou com os cubanos em maio de 2011, as obras de Mariel estavam avançadas. Mas os telegramas sigilosos da Embaixada do Brasil em Cuba revelam que os executivos da Odebrecht cobravam a liberação de mais parcelas do empréstimo do BNDES. Eles também queriam ampliar os negócios em Cuba, participando de obras em aeroportos e, especialmente, na construção de usinas de cana-de-açúcar – sempre, e somente se, o BNDES financiasse as operações. Com o dinheiro do BNDES entrando na Ilha, isolada do mundo, Lula desfrutava a intimidade dos irmãos Castro, que até obrigaram seus cozinheiros particulares a aprender a fazer churrasco só para agradar ao ex-presidente brasileiro.

Ainda no dia 31 de maio, Lula, Dirceu e seus companheiros participaram de um jantar oferecido por Raúl Castro. Um diplomata estava lá. Tal qual um bom repórter, narrou aos superiores, num telegrama secreto, o que se conversou naquela noite – um outro telegrama, seco e sem essas informações, foi liberado pelo Itamaraty em maio, a pedido do jornal O Globo. “A reunião começou com intercâmbio totalmente descontraído de reminiscências, clima que prevaleceu ao longo de toda a estada de Lula”, relatou o diplomata. Ao longo da noite, Lula relembrou seu passado como sindicalista e falou de suas viagens a Cuba, enquanto Dirceu contou histórias sobre o treinamento militar que recebeu na Ilha. Raúl discorreu sobre o período em que viveu com seu irmão Fidel no México e sobre a invasão da Baía dos Porcos, em 1961. Confidenciou que apostava no fim do embargo a Cuba imposto pelos Estados Unidos há 50 anos – daí a importância do Porto de Mariel.
 
ESPERA Dilma Rousseff em visita  a Cuba, em 2014, com Raúl Castro.  Raúl sonhava com a visita havia muito tempo (Foto: Reuters)












Em determinado momento, o ex-presidente brasileiro resolveu falar de negócios. “Lula lhe disse que veio a Cuba reiterar seu desejo de que aumente a presença brasileira no país e afirmou que o Brasil não deixará de ajudar, que está seguro do comprometimento da Presidenta (sic) Dilma Rousseff nesse sentido. ‘Dilma é amiga de Cuba’, disse ele”, segundo o relato do diplomata. Sobre a construção do Porto de Mariel, como se falasse em nome de Dilma, disse que a obra tinha financiamento garantido e que não haveria “mudança”, registra o telegrama. Como um ex-presidente pode, afinal, dar a garantia de que Cuba poderá contar com o dinheiro público do BNDES? E como garante que não haverá mudança, se essa é uma decisão que, em tese, cabe ao governo e ao banco estatal?
 
Num encontro com Raúl Castro, Lula falou de suas viagens a Cuba, enquanto Dirceu contou histórias sobre o treinamento militar que recebeu na ilha"
Na conversa, Lula também insistiu, como queria a Odebrecht, que Cuba mudasse a “matriz energética”, passando a investir mais em usinas de cana para depender menos de petróleo. “Raúl recordou que esse tema, para Fidel, é tabu e implorou, em tom jocoso, que Lula não o mencionasse no encontro que teriam. Lula insistiu: “Fidel está errado: não há incompatibilidade em produzir etanol em Cuba; trata-se de aumentar a produtividade das plantações de cana, cogerar energia e criar empregos”, diz o telegrama. “Nas palavras do ex-presidente, petróleo não gera emprego.” Raúl ficou de pensar e consultar Fidel.

No dia seguinte, Lula visitou as obras do Porto de Mariel ao lado de Raúl Castro e executivos da Odebrecht – entre eles, Marcelo Odebrecht, presidente da empresa, hoje preso na Lava Jato. Os homens da Odebrecht contaram que o BNDES ainda não liberara uma parcela de US$ 150 milhões ao projeto Mariel. Pediram ajuda. Em seguida, Lula visitou, sozinho, Fidel Castro. Antes de ir embora, Lula recebeu uma carta a ser levada ao ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel. Continha um pedido para mais um projeto da Odebrecht em Cuba.

No dia 23 de agosto de 2011, meses depois da visita de Lula e de ele afiançar que Dilma faria o que garantia, o BNDES liberou os US$ 150 milhões para a Odebrecht prosseguir nas obras de Mariel.
Nosso homem em Brasília

O principal interlocutor (oficial) do governo brasileiro com os cubanos era Fernando Pimentel, hoje investigado pela PF por suspeita de corrupção passiva e lavagem de dinheiro envolvendo o BNDES. Pimentel, mostram os documentos, agia em sintonia com os interesses de Lula, da Odebrecht e do governo cubano. Em maio de 2013, ele esteve em Cuba. “O MDIC (Pimentel) referiu-se à amizade do Brasil com Cuba e reiterou o apoio do governo aos esforços de modernização da economia e aumento da produção na Ilha. Afirmou que não faltarão recursos para o apoio brasileiro”, relatou o diplomata que acompanhou o encontro com os cubanos.

Na visita, Pimentel assinou um memorando de entendimento com Cuba para conceder empréstimo, via BNDES, de US$ 176 milhões para a modernização de cinco aeroportos na Ilha. Após um longo período de negociação, em março deste ano, a Odebrecht iniciou a reforma e a ampliação do terminal 3 do Aeroporto de Havana, que contou com dinheiro do BNDES. Em outras ocasiões, seguindo os passos de Lula, Pimentel era o próprio garoto-propaganda da Odebrecht na América Latina. Em setembro de 2012, numa reunião em Montevidéu, Pimentel defendeu que o país se espelhasse no exemplo da Odebrecht em Cuba – e disse que a empreiteira tinha interesse em investir no Uruguai. 

Meses depois da visita de Pimentel, um navio atracou ilegalmente no Porto de Mariel, ainda em obras. Embarcaram-se ali, sob os olhos dos funcionários da Odebrecht, armas como tanques e caças, destinados à Coreia do Norte, escondidos sob uma carga de açúcar. O navio foi descoberto no Panamá. O Conselho de Segurança da ONU classificou o ato como um dos piores atentados à lei internacional dos últimos anos.
 
REFORÇO O ministro Pimentel, em 2013. Ele visitou Cuba e retomou a conversa iniciada por Lula (Foto: Alan Marques/Folhapress)
Em documento secreto produzido em 20 de janeiro de 2014, com divulgação anotada para 20 de janeiro de 2020, o embaixador Cesário Melantonio Neto escreve: “Informo e peço providências. Em reunião realizada hoje com representantes da Odebrecht em Cuba, foi discutido o financiamento para a construção da zona industrial ao redor do Porto de Mariel. A esse respeito, muito agradeceria confirmar a possibilidade de incluir o tema na ata da visita presidencial”. No mês seguinte, Dilma desembarcou em Cuba e cumpriu o ritual do financiamento. Segundo relato reservado do diplomata, Dilma classificou como “peça-chave para a promoção do desenvolvimento econômico cubano” o financiamento previsto de US$ 290 milhões para a segunda fase de Mariel, como pedira a Odebrecht.
 
Um navio cubano com tanques e caças embarcou do Porto de Mariel em direção à Coreia do Norte"
O problema é que, mesmo com a boa vontade do governo brasileiro, o BNDES já havia emprestado demais à Odebrecht. De acordo com o site do BNDES, obras da Odebrecht em Cuba receberam US$ 832 milhões de financiamentos do banco entre fevereiro de 2009 e agosto de 2014. Foi a empresa que mais recebeu dinheiro do BNDES para financiar obras em Cuba. Desse volume total de recursos, US$ 682 milhões foram destinados para o Porto de Mariel em cinco operações de crédito. O valor restante, US$ 150 milhões, foi liberado em agosto de 2014 para obras de modernização e ampliação de aeroportos do país.

Dias depois de Dilma, foi a vez de Lula visitar os cubanos. No encontro, s Lula apresentou aos ministros de Cuba um estudo preparado pela Odebrecht. Apresentavam-se opções para “diversificar a matriz energética” cubana, com o uso de usinas de cana. Mas o grande tema da viagem envolvia a nova parcela de US$ 290 milhões do BNDES – e as dificuldades que a cercavam. Foi com a chancela de Secreto, no dia 3 de março de 2014, às 15h38, que se enviou um telegrama da embaixada brasileira em Havana, Cuba, para o Ministério das Relações Exteriores, em Brasília, relatando os bastidores dessa visita de Lula ao Porto de Mariel. Em conversa privada com Lula, conforme a documentação sigilosa, executivos da Odebrecht se mostraram ressabiados com o BNDES. Conhecendo a realidade da Ilha, eles disseram que, levando em conta que o BNDES já havia emprestado muito dinheiro para Cuba até aquele momento, dificilmente seriam aprovados novos recursos sem “garantias soberanas”, ou seja, consignados pelo próprio país.
O dinheiro do Mais Médicos

Os representantes da empreiteira alertaram o ex-presidente de que a prática de dar “garantias soberanas”, embora muito comum no mercado internacional, encontraria resistência em Havana, onde o capitalismo não tem vez. Por essa razão, os diretores da empreiteira deram quatro sugestões a Lula e indicaram uma preferência: reservar o total ou uma parte do pagamento do programa Mais Médicos; aumentar a oferta de fármacos cubanos no SUS, principal item de importação brasileira; arrendar uma mina de níquel para a Odebrecht ou oferecer a venda de parte da produção cubana de nafta para a Braskem, braço petroquímico da Odebrecht. Essa última solução de fiança, segundo os executivos da construtora, seria a forma mais eficaz no curto prazo – e também a mais benéfica para os negócios da companhia.

O ex-presidente brasileiro entendeu o recado e acatou a sugestão, segundo o despacho secreto. O diplomata que acompanhava Lula anotou: “Registro que o Presidente Lula, na despedida à porta do avião, confidenciou-me ter tratado com o Presidente Raúl Castro da questão das ‘garantias soberanas’, com ênfase à opção pela venda de nafta à BRASKEM, e que reportaria teor das conversações oportunamente à Senhora Presidenta da República”, diz o telegrama. Momentos depois, Lula embarcou num jato, fretado pela Odebrecht, de volta para o Brasil.

Meses depois, outras garantias foram negociadas com o governo brasileiro. Uma delas envolvia a importação de vacinas cubanas, feita pelo Ministério da Saúde do Brasil. Os documentos deixam claro que o governo brasileiro fazia de tudo para tentar fechar o novo financiamento, apesar das garantias precárias. O BNDES ainda estuda se libera o financiamento.
 
Outro lado

Procurado, o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, afirma que, no período em que exerceu o cargo de ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, “não atuou em favor de empresas, nem tampouco a pedido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva”. Diz o texto que várias empresas brasileiras participaram de consulta do governo uruguaio sobre o Porto de Rocha e o governo não atuou em favor de nenhuma das empresas. AOdebrecht afirma em nota que o ex-presidente não teve “qualquer influência” nas suas duas obras em Cuba, o Aeroporto de Havana e o Porto de Mariel. A empresa diz que as discussões sobre bioenergia com o governo cubano não avançaram, mas ainda estuda oportunidades nesse setor em Cuba, a partir da reformulação da Lei de Investimento Estrangeiro. A Odebrecht diz que a empresa na qual trabalha o ex-ministro Silas Rondeau foi uma das contratadas como parceira de estudos na área de energia.

Em nota, a assessoria de imprensa do Palácio do Planalto informou desconhecer o conteúdo dos documentos aos quais ÉPOCA teve acesso. Contudo, o Planalto destaca a importância estratégica do projeto de Porto de Mariel para as relações de Brasil e Cuba. “A possibilidade crescente de abertura econômica de Cuba e a recente reaproximação entre Cuba e Estados Unidos vão impulsionar ainda mais o potencial econômico de exportação para empresas brasileiras.” O BNDES afirma que a Odebrecht é a construtora brasileira com maior presença em Cuba, portanto faz sentido que a maior parcela das exportações para aquele país financiadas pelo banco seja realizada pela empresa. Diz ainda que mantém com a Odebrecht relacionamento rigorosamente igual a qualquer outra empresa. O BNDES nega que esteja financiando projetos envolvendo direta ou indiretamente a Odebrecht no setor de energia, bioenergia ou sucroalcooleiro em Cuba. Sobre entendimento para financiamento de um porto no Uruguai, como indicou o então ministro Pimentel, o BNDES disse que não há nenhuma tratativa referente ao projeto em curso no Banco. Procurado por ÉPOCA, o ex-presidente Lula não quis se manifestar.

Em depoimento à CPI do BNDES, o presidente do banco, Luciano Coutinho, disse que Lula jamais interferiu em qualquer projeto de financiamento. Os documentos obtidos por ÉPOCA mostram uma versão diferente. Caberá ao MPF e à PF apurar os fatos.

R$ 4 milhões pelo lobby: os contratos milionários de Lula com a Odebrecht


ÉPOCA obteve contratos assinados entre o ex-presidente e a empresa. No papel, dinheiro para “palestras”. Na prática, dinheiro para alavancar os negócios da empreiteira no exterior

THIAGO BRONZATTO, COM ANA CLARA COSTA E ALANA RIZZO
17/10/2015 - 01h17 - Atualizado 17/10/2015 15h36

No final da manhã de quinta-feira, 15 de outubro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava bem-humorado. Por iniciativa própria, prestava umdepoimento reservado ao Ministério Público Federal, em Brasília, para explicar sua atuação ao lado da empreiteira Odebrecht. Em vez de ir ao prédio da instituição, Lula foi ouvido em uma casa no Lago Sul, de forma discreta. Foi seu único pedido ao procurador, para escapar ao assédio de jornalistas. Ao seu estilo sedutor, Lula fez piadas com o procurador da República Ivan Cláudio Marx, ao dizer que o Corinthians, seu time, será campeão brasileiro. Na hora de falar sério, disse que não fez lobby, mas sim palestras no exterior com a missão de explicar a receita brasileira de sucesso em países da África e da América Latina. Procurou defender-se na investigação, revelada por ÉPOCA em maio, que apura se ele praticou tráfico de influência internacional em favor da empreiteira Odebrecht. Lula disse que não é lobista, que recebeu “convites de muitas empresas e países para ser consultor”, mas não aceitou porque “não nasceu para isso”. Num termo de declaração de quatro páginas obtido por ÉPOCA, ele sustenta que todos os eventos para os quais foi contratado estão contabilizados em sua empresa L.I.L.S. – um acrônimo de seu nome. Foi por meio dela que Lula ficou milionário desde que deixou o Palácio do Planalto, em 2011.

AMIGOS Lula com Alexandrino Alencar, da Odebrecht  (de barba, atrás), no Peru. Alexandrino era o responsável pelas palestras de Lula no exterior e viajava com ele (Foto: reprodução)
ÉPOCA obteve cópia dos contratos privadosnotas fiscais edescrições das relações entre o ex-presidente e sua principal contratante. Nomeado projeto “Rumo ao Caribe”, as viagens de Lula bancadas pela Odebrecht inauguraram um padrão de relacionamento do ex-presidente, poucos meses após deixar o Planalto, com a empreiteira-chave da Lava Jato.  Ao longo dos últimos quatro anos, a L.I.L.S. foi acionada para que Lula desse 47 palestras no exterior, muitas a convite de instituições. Sua maior cliente é, de longe, a Odebrecht.
Contratos assinados entre Lula e Odebrecht (Foto: reprodução)
A construtora que lidera a lista das patrocinadoras de Lula pagou quase R$ 4 milhões para o ex-presidente fazer dez palestras. Além disso, bancou os custos das viagens para países em que possui obras financiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), como Angola e Venezuela. Esses gastos de R$ 3 milhões, ao câmbio da época, incluem transporte e hospedagem em hotéis “5 estrelas ou superior”, com dormitório com cama king size, sofás, frutas, pães, queijos, frios, castanhas, água, refrigerantes normais e do tipo “zero” e, em alguns casos, fora do contrato, bebidas alcoólicas. As contratantes eram responsáveis por fretar aeronaves particulares. Ter Lula como palestrante custava caro. Mas, na maioria das vezes, valia muito a pena. 
O “Palestrante” Lula (grafado desse jeito pela própria empresa em seus papéis internos) passou a ser mobilizado para atuar em locais onde a Odebrecht enfrentava pepinos em seus contratos. Em 1º de maio de 2011, Lula se comprometeu, por R$ 330 mil, a desembarcar na Venezuela no início de junho para falar sobre os “Avanços alcançados até agora pelo Brasil”. A descrição das atividades que constam da cláusula 1.1 do contrato dizia que o “Palestrante” não participaria de qualquer outro evento além daqueles descritos “exaustivamente” no anexo 1. O tal anexo, no entanto, possui duas linhas que mencionam apenas que o ex-presidente ficaria hospedado no Hotel Marriott de Caracas. Quando superposto aos documentos doInstituto Lula sobre o mesmo evento, vê-se que Lula se encontrou com o empresário Emílio Odebrecht, pai de Marcelo Odebrecht, hoje preso em Curitiba, e com o então presidente venezuelano, Hugo Chávez, morto em 2013. Era um momento de tensão entre o governo venezuelano e a empreiteira, que cobrava uma dívida de US$ 1,2 bilhão.
Telegramas sigilosos do Itamaraty sugerem que Lula e Chávez trataram sobre a dívida. A Odebrecht construía, desde 2009, a linha II do Metrô de Los Teques e a linha 5 do Metrô de Caracas. Fruto de uma negociação entre Lula e Chávez, o projeto foi irrigado com US$ 747 milhões (R$ 1,2 bilhão, em valores da época) em empréstimos do BNDES. A pressão de Lula surtiu efeito. Quatro dias após a visita do ex-presidente a Caracas, Chávez se encontrou com a presidente Dilma em Brasília. Naquele momento, a dívida com a Odebrecht já estava acertada. As duas obras são investigadas pelo Ministério Público Federal e pelo Tribunal de Contas da União. A principal suspeita, conforme revelou ÉPOCA em maio, é que os recursos tenham sido utilizados de forma irregular e de maneira antecipada sem o avanço do projeto – o dinheiro chegou, mas a obra não andou.
Em seu depoimento ao Ministério Público, Lula disse que não é lobista e “não nasceu” para ser consultor
Em alguns casos, as viagens de Lula eram sucedidas por concessões de empréstimos do BNDES para obras de infraestrutura no país.Angola é um exemplo disso. Desde 2011, a Odebrecht foi a que mais recebeu financiamentos do BNDES no país africano, que está no topo da lista de recursos destinados pelo banco para exportação. Entre abril de 2011 e abril de 2014, foram liberados US$ 3,1 bilhões dos cofres do BNDES para a Odebrecht. Nos dias 30 de junho e 1o de julho de 2011, Lula foi contratado pela Odebrecht para dar uma palestra na Assembleia Nacional em Luanda, capital da Angola, sobre “O desenvolvimento do Brasil – modelo possível para a África”. Em seguida, Lula se reuniu por 40 minutos com o presidente do país, José Eduardo dos Santos. Após a conversa, Lula se encontrou com Emílio Odebrecht e com diretores das empreiteiras Queiroz Galvão, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez. Lula aterrissou em São Paulo no dia 2 de julho, à 0h30. No dia 28 de julho de 2011, o BNDES liberou um empréstimo de US$ 281 milhões (R$ 455 milhões, em valores da época), tão aguardado pela Odebrecht, para a construção de 3 mil unidades habitacionais e desenvolvimento de infraestrutura para 20 mil residências em Angola.
No dia 6 de maio de 2014, Lula e Emílio Odebrecht voltaram a se encontrar em Angola. O ex-presidente viajou, numa aeronave cedida pelo governo angolano, de Luanda para a província de Malanje, onde visitou a usina de açúcar e etanol Biocom, sociedade entre a Odebrecht Angola e a Sonangol. Em depoimento de sua delação premiada, o lobista Fernando Soares, o Baiano, disse que se associou ao empresário José Carlos Bumlai, amigo de Lula, para viabilizar a palestra do ex-presidente em Angola. Baiano atendia a um pedido de um general angolano, interessado no negócio. Lula estava a todo momento acompanhado por Emílio Odebrecht, pela ex-ministra do Desenvolvimento Social Márcia Lopes e pelo ex-deputado federal Sigmaringa Seixas, além de autoridades angolanas. Na manhã do dia seguinte, o ex-presidente teve uma reunião de cerca de uma hora com o presidente de Angola, José Eduardo dos Santos. Nesse encontro, discutiram, entre outros assuntos, a linha de crédito do BNDES para a construção da hidrelétrica de Laúca, segundo telegramas do Itamaraty. Em dezembro do ano passado, sete meses após a visita de Lula, o ministro de finanças de Angola, Armando Manuel, assinou o acordo de financiamento com o BNDES. Em maio deste ano, o presidente do banco, Luciano Coutinho, deu o último aval para a liberação de um empréstimo que pode chegar a US$ 500 milhões (R$ 1,5 bilhão). Questionado pelo Ministério Público, Lula disse que “nada foi referido sobre o financiamento do BNDES para a construção da hidrelétrica de Laúca e que o presidente José Eduardo nunca tratou desses temas”, embora documentos oficiais do Itamaraty mostrem uma versão diferente. “Não passa de uma ilação, porque o comunicante (do Itamaraty) não teria participado da reunião”, disse Lula.
EFICIENTE Lula com Hugo Chávez em Caracas, em 2011, e trechos de seus contratos com a Odebrecht (abaixo). Após uma palestra de Lula, o governo venezuelano pagou uma dívida com a Odebrecht (Foto: Jorge Silva/Reuters)
Lula com Hugo Chávez em Caracas, em 2011, e trechos de seus contratos com a Odebrecht. Após uma palestra de Lula, o governo venezuelano pagou uma dívida com a Odebrecht (Foto: reprodução)
Em suas viagens pela América Latina e pela África, Lula era 
acompanhado de perto pelo diretor de relações institucionais da Odebrecht, Alexandrino Alencar, apontado como o lobista da construtora na Operação Lava Jato. Após quatro meses preso em Curitiba, no Paraná, o executivo foi libertado na sexta-feira pordecisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki. O contrato original, que selou a parceria da Odebrecht com Lula, leva a assinatura de Alexandrino e de Paulo Okamotto, braço direito do ex-presidente. Lula e Alexandrino se conhecem desde os tempos de Lula no Planalto. A proximidade entre eles era tão grande que se cumprimentavam com um beijo no rosto. Essa intimidade se intensificou após 2011, quando Lula passou a defender, ao lado de Alexandrino, os interesses da Odebrecht no exterior. Um relatório de perícia do MPF sobre os movimentos migratórios de Lula e o ex-funcionário da Odebrecht aponta que os dois companheiros compartilharam ao menos cinco voos juntos nos últimos quatro anos, de acordo com dados extraídos do sistema de tráfego internacional da Polícia Federal. Nesta semana passada, no depoimento ao Ministério Público, Lula manteve uma distância olímpica do amigo ao dizer que “Alexandrino era representante da Odebrecht, não sabendo precisar o cargo; que só tinha relação profissional com Alexandrino”.
Um mapa, um negócio (Foto: Revista ÉPOCA/Reprodução)
Um mapa, um negócio (Foto: Revista ÉPOCA/Reprodução)
Um dos destinos da dupla foi uma caravana para Cuba e República Dominicana entre 28 de janeiro e 3 de fevereiro de 2013. Lula recebeu R$ 373 mil pelas palestras. Naquela ocasião, Lula visitou o Porto de Mariel, parceria entre a Odebrecht e o governo cubano. Ao todo, a obra recebeu US$ 832 milhões do BNDES com um prazo para pagamento de 25 anos – e com uma parte das garantias atreladas à produção de fumo na ilha. Quatro meses após a passagem de Lula por Cuba, o banco estatal brasileiro liberou a quinta parcela do financiamento do projeto, de US$ 229,9 milhões (R$ 482,7 milhões), que estava represada devido ao atraso nos pagamentos e à falta de garantias para a operação. Em 31 de janeiro, Lula desembarcou na República Dominicana, onde se encontrou com o presidente Danilo Medina. E lá foi o líder petista visitar, novamente, outro canteiro de obras da Odebrecht. Seis meses depois, a Odebrecht conseguiu mais US$ 114 milhões (R$ 228 milhões) do BNDES para desenvolver o corredor Viário Norte-Sul no país.
Procurada, a Odebrecht afirma por meio de nota que mantém “uma relação institucional e transparente com o ex-presidente Lula. O ex-presidente foi convidado pela empresa para fazer palestras para empresários, investidores e líderes políticos sobre as potencialidades do Brasil e de suas empresas, exatamente o que têm feito presidentes e ex-presidentes de outros países, como Estados Unidos, França e Espanha”. A Odebrecht nega que Lula tenha feito lobby em seu favor junto a governos estrangeiros. O depoimento de Lula pode ter sido agradável, mas o Ministério Público Federal no Distrito Federal estuda formar uma força-tarefa de procuradores para investigar as suspeitas de tráfico de influência. Pediu até o compartilhamento de provas da Operação Lava Jato que mencionem o ex-presidente, a Odebrecht e o BNDES.

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