Bruno Felin
A filósofa francesa Simone de Beauvoir dizia que o homem nasce livre, mas o acaso sempre tem a última palavra. Seja por obra dele ou não, o público gaúcho ganha a chance de estar novamente frente a frente com a unanimidade do teatro nacional Fernanda Montenegro. Sob um único facho de luz e cenário minimalista, ela dá vida aos pensamentos da autora no monólogo Viver sem tempos mortos, em cartaz de amanhã a domingo, no Theatro São Pedro (Praça da Matriz, s/nº). Os ingressos estão esgotados.
Longe dos palcos desde 2001, quando encenou Alta sociedade, a atriz retorna na pele de uma das pensadoras mais influentes do século XX. Dispensando grandes movimentos físicos ou artifícios cenográficos, o diretor Felipe Hirsch preparou um espetáculo que apresenta Fernanda em sua forma de atuação mais pura. O cenário de Daniela Thomas propõe o minimalismo e a delicadeza - o palco é composto apenas pela luz e por uma cadeira preta - para dar destaque ao mais importante: o texto e a interpretação. Na simplicidade de uma calça social e uma camisa branca, a atriz apresenta o texto elaborado a partir de estudos seus e do tradutor Newton Goldman, sobre o célebre e controverso casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.
Apesar da complexidade da obra, os pensamentos da feminista já foram encenados para o público elitizado dos grandes teatros nacionais, mas também para a periferia de São Paulo e Rio de Janeiro, no projeto Caminhos da Liberdade, com ingressos gratuitos ou a preços populares, que incluíram debates com o público. “É claro que de início quando se falou em levar a filosofia de Simone de Beauvoir para a periferia, todos acharam que era coisa de maluco. Mas acontece que ela fala de coisas muito fortes e vivas. Não é um espetáculo sobre uma dramaturgia inventada, ela fala de seus pensamentos diretamente”, explica Fernanda. E completa: “Foram encontros extraordinários, como o caso de uma mulher que disse: ‘Essa Simone não é de nada, pois ela vivia apegada nesse homem aí. Eu é que sou livre, não tenho nenhum homem na minha vida, trabalho e tenho dois filhos’. Esse tipo de afirmação de uma mulher do povão mesmo foram momentos muito sérios e muito bonitos”, conta a atriz.
A preocupação com a expansão cultural do País é recorrente no discurso de Fernanda. Segundo ela, “o povo pode ver tudo e vai entender tudo, do espetáculo mais complexo, de uma estrutura gramática beckettiana (Samuel Beckett, dramaturgo e escritor irlandês) até Cala a boca Etelvina (chanchada brasileira de 1959)”. Ela vê a importância de sua profissão no poder de gerar discussões na sociedade. “Principalmente a minha geração, que foi formada em dramaturgia, trabalha sobre poetas e autores importantes, então no texto há uma complexidade maior do que fazer bem ou mal a cena. Esse tipo de peça traz uma discussão de pensamento, do calor e da humanidade, que pode ser material de transformação”, argumenta.
Mesmo para uma profissional experiente como Fernanda Montenegro, encenar um monólogo ainda é um desafio. “Cada noite é uma viagem solitária sem rede de segurança. É impressionante, pois quando há companheiros em cena você divide as tensões, mas o caminho do ator que se joga no monólogo é muito solitário, afinal não há com quem conversar e não há o companheirismo de elenco, até mesmo para brigar. Acho que todo ator deve tentar fazer, é uma assinatura corajosa onde se passa por uma prova de fogo”, afirma.
No palco, a atriz serve como uma porta-voz do discurso de Simone, através da seleção de diversos textos e cartas trocadas entre a filósofa e seu companheiro, Jean-Paul Sartre. Mas o discurso feminista da autora não significa uma oposição ao machismo, pois, segundo ela, não se nasce mulher, mas também não se nasce homem. A virilidade masculina é, afinal, uma invenção cultural. “Ela dizia uma coisa muito bonita, que não queria que as mulheres tomassem o poder dos homens, pois isso não mudaria nada. Simone não é panfletária, não é contra o homem, é a favor dele, mas não desse homem deformado por uma visão milenar cultural”, explica Fernanda.
Entre as obras que o acaso aplica a nós e a Fernanda, certamente o prêmio Oscarito recebido ontem, no Festival de Cinema de Gramado, não é uma delas. Seus trabalhos e atuações ficam e continuam entrando para a história da dramaturgia nacional. Sobre o prêmio, ela diz que se sente muito feliz em recebê-lo, “pois eu vi ele na praça Tiradentes, era fã das suas chanchadas e ele foi um cômico que, se estivesse nascido em um país com uma língua de Primeiro Mundo, estaria entre os grandes comediantes do século passado”. Resta torcer para que o acaso siga nos brindando com interpretações como a que poderemos apreciar a partir de amanhã, no Theatro São Pedro. Uma grande mulher que retorna ao palco gaúcho a convite da amiga Eva Sopher.
http://jcrs.uol.com.br/site/noticia.php?codn=69819