terça-feira 27 2014
Leis e contratos brasileiros punem ‘catraca livre’ nas greves do país
POR RODRIGO RODRIGUES
Depois de dois dias de greve de motoristas e cobradores de ônibus que deixou o sistema de transportes de São Paulo em colapso, nesta semana o tema que tomou conta das rodas de discussões e nas redes sociais foi: por quê os trabalhadores de transporte público no Brasil não optam por protestos com 'catracas livres' antes da paralisação, sem prejudicar outras categorias?
Em alguns países da Europa e do Oriente Médio, por exemplo, a paralisação é o último recurso depois de exaustivas mesas de negociações, ameaças de greve e a liberação das catracas para os passageiros andarem de graça durante parte do período do dia, ou durante vários dias seguidos. A ideia é que o bolso do patrão e do poder público seja penalizado, e não o cidadão comum.
No Brasil, contudo, a greve parece ser o único recurso da categoria, depois do chamado “estado de greve” e a “ameaça de greve”.
Só parece.
Para entender os mecanismos que levam as categorias a optarem pela paralisação e não pela chamada 'catraca livre', o Terra Magazine ouviu alguns importantes sindicatos, advogados e associações de transporte do País.
O principal argumento dos sindicalistas diz respeito à proteção que os tribunais de conciliação trabalhista fazem do patrimônio e faturamento das empresas detentoras da concessão pública de transporte, segundo Dagnaldo Gonçalves, diretor do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Transportes Metroviários de São Paulo.
“Todos os anos antes da greve, a gente propõem a liberação das catracas nas audiências de conciliação. O governo não aceita e os tribunais acolhem a alegação, com o juiz sempre pedindo 100% da frota em funcionamento em horário de pico. Ora, 100% em horário de pico não é greve. Se a gente desrespeita, o tribunal impõe penas duríssimas aos sindicatos que chegam até a R$500 mil por dia. Nenhum sindicato tem dinheiro suficiente em caixa para bancar essa multa. Por outro lado, não há uma população engajada na luta dos trabalhadores para garantir que esse dinheiro não seja cobrado”, relata Gonçalves.
Depois dos motoristas de ônibus, os metroviários de SP também articulam um movimento grevista para os próximos dias e tentam garantir uma reposição salarial de 35,47% dos salários.
A categoria alega que há vários anos não conseguem aumento real de salário acima de 2%.
No ano passado, a reposição acima da inflação foi de apenas 1%. Neste ano, devido à ameaça inflacionária invisível, acham que hora de exigir reposição salarial melhor.
“Os metroviários de Brasília transportam 200 mil pessoas por dia e têm o salário 35% maior que o nosso, que transportamos 5 milhões de usuários. A lei manda pagar adicional de periculosidade para os agentes de estação, o Metrô não paga. A categoria tem um piso de R$ 2 mil, e tentam dizer que é muito. Ora, R$ 2 mil para um trabalhador pai ou mãe de família é quase nada. O governo diz que a categoria tem média salarial de R$4 mil. Claro, tem uma porção de gerente de estação, gerente de operações, coordenador de maquinário, ganhando R$20 mil. Óbvio que eleva a média para cima. Mas e os seguranças, agentes de estação, como ficam nessa história?”, questiona Dagnaldo Gonçalves.
O Sindicato de Motoristas e Cobradores de Ônibus de Curitiba e Região Metropolitana (Sindimoc) foi um os últimos a fazer greve neste ano na capital paranaense.
A greve do transporte coletivo na cidade durou quatro dias e, graças à audiência de conciliação, os trabalhadores conseguiram 4% de aumento real, mais abono e 10,5% de reajuste no vale alimentação.
O valor é considerado razoável pelo presidente do sindicato, Anderson Teixeira. Mas ele narra a pressão econômica dos empresários na mesa de negociação:
“No pedido que os empresários e a própria prefeitura fizeram à Justiça, foi solicitada a aplicação de uma multa de R$1 milhão por dia parado, caso o acordo de conciliação não fosse respeitado, mais desconto em folha dos dias parados. A juíza até deu um bronca no representante deles, dizendo que nem os patrões conseguiam arrecadar R$1 milhão por dia. No final, ela reduziu a multa para R$100 mil. Mesmo assim, poucas entidades conseguem manter uma greve com multas tão altas”, revela Anderson Teixeira.
Segundo o presidente do Sindimoc, no primeiro dia de paralisação foi proposto um acordo de catracas liberadas ao setor patronal, para que a população não fosse prejudicada. Mas os empresários nem cogitaram em negociar, segundo Teixeira.
“Quando propusemos a chamada 'paralisação branca', a junta de empresários foi a primeira a dizer que faturava X por dia e que iria cobrar de alguém aquele faturamento, se os veículos saíssem das garagens. Eles ameaçaram abrir ação contra os próprios trabalhadores e não contra o sindicato, por uso de patrimônio privado. Imagina um pai de família tendo que pagar por cinco, dez dias de 'paralisação branca'? Isso desmobiliza a categoria e impõe medo aos trabalhadores. Nossa equipe técnica analisou a legislação e chegou à conclusão de que as leis protegem o patrimônio privado são muito rigorosas. As chances de ganhar numa disputa de tribunal é muito baixa, o que deixa a maioria dos sindicatos com o pé atrás”, explica o presidente do Sindimoc.
Opinião patronal
Segundo Marcos Bicalho, diretor Administrativo e Institucional da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), essa pressão acontece porque as empresas também têm custos de operação e não podem arcar sozinhas com paralisações brancas.
“Quando o veículo não sai da garagem, não há custo adicional para o empresário. A lei garante a greve, logo também não há ilegalidade. Mas quando os carros deixam as garagens, o empresário além de não ganhar, tem despesas de manutenção, gasolina e mão de obra dos veículos. Nós não somos contra uma pactuação conjunta para liberar as catracas. Mas o poder público tem que se responsabilizar pelas despesas. Do contrário, não temos acordo”, diz Bicalho.
O representante da NTU também considera a paralisação branca como ilegal, porque os próprios contratos de trabalho de cobradores de ônibus prevêem punição para diferença de valores apresentadas na volta para a garagem.
“O cobrador quando assume o posto na garagem, ele tem um número de catraca. No contrato de trabalho é claro que, se o valor entregue ao empregador for menor que o número final, ele pode ser acusado de roubo e ser demitido individualmente por justa causa. O que garante ao empresário que ele deixou a catraca livre ou não embolsou o dinheiro? O setor empresarial não cobra do sindicato porque está muito claro no contrato que o trabalhador assina no ato da contratação dele”, argumenta Marcos Bicalho.
O advogado Álvaro Trevisioli, especialista em Relação do Trabalho, concorda que o risco do trabalhador ser obrigado a indenizar o patrão é muito alto. Para ele, esses riscos não valem a pena a partir do momento que a CLT assegura o direito de greve no Brasil.
“A grande maioria dos contratos de trabalho tem clausulas que estabelecem que, se o trabalhador impõe prejuízo comprovado ao empregador, é direito dele descontar esse prejuízo em salário ou até demissão por justa causa. É a lei. Num país onde as leis protegem o direito legítimo de greve, fazer paralisação é muito mais seguro para qualquer categoria”, comenta Trevisioli. “Num mundo ideal, com a população pressionando as empresas com protestos e boicote aos serviços, talvez fizesse os empresários reverem a multa. Mas no Brasil, quem é que está disposto a ir às ruas para lutar por uma categoria que não seja a sua?”, argumenta o sócio da Trevisioli Advogados Associados.
A explicação do advogado Márcio Rocco vai na mesma linha de Trevisioli. Ele também é especialista em Relações do Trabalho e já advogou para alguns sindicatos.
De acordo com Rocco, a legislação trabalhista brasileira é bem moderna, copiando em grande parte o que acontece na Europa, apesar de algumas particularidades.
O advogado diz, contudo, que a chamada ‘greve branca’ não está prevista na nossa legislação e, portanto, é muito fácil de ser considerada legal nos tribunais, obrigando a indenização das empresas.
“Na nossa legislação, o direito de greve é assegurado, mas os trabalhadores têm que respeitar certas normas, como aviso com 72 horas de antecedência, mesas e grupos de negociação esgotados, aviso aos sindicatos patronais, não parar 100% da frota. Essa greve de ônibus que houve em São Paulo não tem precedentes recentes no País, porque parece de fato uma crise de representação. Mas os trabalhadores não cumpriram as regras e ainda passaram por cima de um acordo coletivo firmado. Não temos jurisprudência ainda no Brasil sobre casos assim, mas, salvo se o juiz abrir mão da multa para tentar acordo de volta ao trabalho, essa paralisação certamente vai impor prejuízos aos trabalhadores que pararam e ser julgada ilegal”, diz Márcio Rocco.
Manobras políticas
Diante desse cenário, os sindicalistas se dizem “amarrados”, sem opção para levar a cabo as reivindicações da categoria.
“Antes da greve tentamos distribuir panfletos e usar o sistema de microfones das estações para dialogar com a população e informar nossas reivindicações. Mas o metrô proibido e emitiu, já neste ano novamente, comunicado proibindo e cerceando, inclusive, a panfletagem nas áreas de dentro das estações, sob o risco de demissão dos empregados. Nos resta apenas trabalhar de colete, como estamos fazendo há 60 dias, e iniciar uma mobilização de greve. É isso ou aceitar o que querem os patrões”, diz Dagnaldo Gonçalves, do Sindicato dos Metroviários de SP.
Gonçalves afirma que neste ano de 2014 mais uma vez os sindicalistas irão propor ao Metrô e CPTM de São Paulo a paralisação branca, caso as negociações com o Governo de São Paulo não avancem.
Mas o representante dos metroviários prevê que a chance de prosperar é pouca, porque o governo usa a greve também como instrumento político.
“As pessoas gostam de dizer que sindicato gosta de fazer greve. Não gosta. Neste ano nós nem estamos muito encorajados até agora para isso. Porque a greve também é um instrumento limitador. A partir do momento que ela começa, a Justiça entra em campo para mediar e estipula várias limitações, forçar acordos não tão vantajosos, limitando o poder de negociação dos trabalhadores. Então, para o governo a greve é melhor opção também que a catraca livre. Porque ele conta com o fator midiático, que é colocar a população contra os grevistas. Para boa parte da imprensa, a greve só está causando transtornos à sociedade”, lamenta Gonçalves.
Interesse público x privado
Questionados se no Brasil já houve algum caso de sindicato ou categoria por greve branca, nenhum dos sindicalistas e advogados consultados pela reportagem disse se lembrar de sindicato que tenha feito greve branca e nem que tenha sido penalizado por isso. O receio de demissões e prejuízos para a classe parece imperar.
Então, será que não está faltando coragem para as categorias experimentarem uma primeira greve branca no Brasil?
Anderson Teixeira, do Sindimoc, diz que sim:
“Falta coragem para arriscar sim. O dia que alguém fizer a primeira, os resultados poderão servir de fato de embasamento para uma nova tendência. Mas penso que deva partir de uma categoria cujos ônibus ou trens sejam públicos, e não fruto de concessão. Porque os empresários são mais gananciosos. E os governos mais aptos à pressões públicas da sociedade. Mas é um modelo que só vai vingar se a sociedade estiver junto com os grevistas”, defende Teixeira.
O advogado Márcio Rocco diz que é possível mudar a lei e enquadrar a greve branca como obrigatória ou opcional no Brasil, por proteção do interesse público. Mas, de acordo com o advogado, é também uma mudança que só acontece com mobilização da sociedade.
“Num Congresso onde os interesses políticos e patronais têm mais força que a voz do cidadão, só a mobilização pública pode mudar isso. O cidadão tem que tomar o controle da vida coletiva, não apenas reclamar entre os colegas. Só a pressão popular pode colocar os interesses das categorias e das empresas abaixo do interesse da sociedade, que é o que deve imperar sempre”, lembra Rocco.
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