Artigo: saiu
no Estadão de hoje um artigo meu. este é o original, inclusive sem revisão
final. Trata do caso da adolescente australiana que passou a denunciar suas
próprias fotos.
Oscar Wilde
descreveu um jovem de beleza sedutora. Dorian Gray impressionava todos, mas
guardava um segredo terrível no sótão. O rosto verdadeiro de Dorian estava numa
pintura que envelhecia e mostrava os efeitos da vida dissoluta . O jovem que
circulava pelo mundo londrino , era falso. O encanto de Dorian era obtido às
custas do envelhecimento da imagem. Talvez, sem querer, o texto de 1890
analisou o primeiro grande perfil em rede social do mundo contemporâneo.
Se a metáfora do embelezamento artificial do photoshop for válida, o processo é
mais universal e antigo. Quando o livro de Wilde foi escrito, o império
britânico era governado pela Rainha Vitória (1819-1901). Ao assumir o trono,
ela foi retratada a óleo diversas vezes, no brilho radioso dos seus 18 anos.
Porém, a Vitória real era baixa e pouco graciosa. A natureza fora avara em
distribuir atributos físicos à sobrinha do rei. Mas, nas pinturas, ela parecia
muito melhor. Como sabemos? Muito cedo, ela conviveu com a invenção da
fotografia e foi a primeira soberana inglesa a ser amplamente registrada. As
fotos mostram o quanto a técnica dos pintores criava, melhorava, embelezava.
Basta pesquisar e comparar Vitória a óleo e Vitória em foto. São seres
diferentes. Talvez isto valha até hoje: fotos em preto e branco costumam
melhorar quem é um pouco mais, digamos, experiente. Fotos em close, com
máquinas de alta resolução, são um desafio para pessoas que vivem em patamares
estéticos mais modestos.
Sabemos da importância da cenografia: sorrimos, encolhemos a barriga, mostramos
o melhor ângulo, arrumamos a roupa: todos estes gestos são herdeiros do belo
Dorian Gray. Apagamos fotos que mostram resultados ruins. Divulgamos as que
consagrariam o ideal de quem eu suponho ser e do que eu suponho que os outros
gostarão que eu seja. Quem eu sou de verdade é sempre um desafio.
Por que estamos pensando nisto? Essena O’Neil é uma adolescente australiana
comum. Passou grade parte da sua vida registrando e postando os melhores
resultados da sua imagem. Teve sucesso: chegou a meio milhão de seguidores.
Bonita, melhorou tudo com boas roupas, luz adequada, ângulos corretos. O que
ela fez com muito método , é feito por quase todo mundo. Sentiu prazer com
muitas curtidas e considerou-se popular. Dormia sorrindo com o êxito fugaz da
rede e deve ter angariado muitas relações com a fama. Aprendeu cedo como o
mundo é generoso com a beleza.
Um dia ela teve uma crise. O vazio das aparências a pegou, talvez. Entrou em
contradição entre o que postava e o que sentia, entre quem era de fato e o que
supunham que ela fosse. Essena real tornou-se inimiga da Essena virtual. Como a
personagem de Oscar Wilde, ela atacou sua própria imagem. A adolescente passou
a publicar legendas demolidoras, falando como tudo aquilo tinha sido falso e
ensaiado. Denunciou as muitas tentativas até acertar, as poses artificiais, o
absurdo da cena zen meditando na praia ou da magreza conseguida com inclinações
calculadas do tronco. Resultado? Virou uma celebridade ainda maior. Ela teve
mais acessos e chamou a atenção do mundo. Por quê?
Temos uma raiz platônica e cristã na condenação da aparência. Usamos expressões
ambíguas como “aquilo que somos por fora e por dentro”, como se meu sorriso
fosse menos eu do que meu intestino ou como se minha humildade me pertencesse mais
do que minha vaidade... Pessoas ponderadas e mais velhas recomendam a jovens
bonitas: cuide mais do seu interior. Recriminamos quem se mira por horas em
espelhos. Nossa crítica à vaidade aumenta à medida que os motivos para sermos
vaidosos diminuem. Nosso envelhecimento é a fonte da nossa virtude. “Não tire
tanta foto de si” , pois, é óbvio, eu já não quero mais tirar de mim.
Essena foi uma jovem submetida à pressão das redes sociais. Acreditou na
personagem que ela elaborava. Foi uma boa atriz no papel de si mesma. Teria
sido influência de alguma leitura ou aconselhamento a crise que ela demonstrou
ao se atacar publicamente como produto midiático? Ou seria um golpe
publicitário? Ela teria visto como chance de expansão de curtidas, um
reviravolta na sua trajetória? Este “sincericídio” que ela praticou seria fruto
de medo, sabedoria, cansaço ou desejo de expansão da influência com outra
personagem? Talvez nunca saibamos porque, provavelmente, ela também não sabe.
A resposta é pouco relevante. O mais importante é a atenção que o mundo deu ao
fato, sinal de que, autêntica ou não, Essena dialogou com pontos delicados das
redes sociais.
O choque é antigo: entre o real e o ideal, damos braçadas sem muito rumo. Há
cenografia intencional nas fotos que estão sobre nosso aparador na sala.
Retratam a família que desejaríamos ter nos seus momentos de estetização,
harmonia ou sofisticação turística. Não há fotos das discussões, da dor, de
como engordamos ou de como foram tediosas nossas cenas em casa. Lá somos todos
sorrisos, belos, felizes e com uma vida interessante. Fotos familiares são
desejos embalsamados.
A estátua da Vênus de Milo agrada mais gente do que o quadro “a origem do
mundo”, de Courbet. O mármore mostra uma mulher idealizada, sem pelos e
perfeita. O quadro é uma genitália cruamente exposta, real e desafiadora.
Achamos mais palatável o que mente mais, idealiza mais, ou cria uma alternativa
ao peso imperioso da natureza e da realidade. Sei que a mulher exposta na
revista masculina é fruto de um esforço técnico para reduzir imperfeições e
aplainar caprichos da mãe natureza. Mas, não é exatamente por isto que eu
compro a revista? Se eu quisesse realidade, olharia para o lado. A imagem
virtual funciona como o álcool: eu não bebo apesar do álcool produzir relaxamento,
aumento de confiança e até desnorteio. Bebo, exatamente, por isto. Os corantes
tornaram-se tão indispensáveis à indústria da alimentação como o photoshop para
as imagens públicas das redes sociais. O fundo da caverna de Platão é
confortável, tem gente por perto com valores similares, a luz não cega e o que
vemos é agradável.
O poeta Rilke (1875-1926) definiu o Belo como o grau do terrível que toleramos
e que desdenha destruir-nos (Primeira elegia) . É uma definição linda e
enigmática. As redes sociais jorram o belo por todos os poros. Flores,
sorrisos, o pôr do sol, praia, corpos, festas , animais de estimação
maravilhosos e muita alegria...Ah e as comidas que impressionam... As imagens
são nosso álcool estético, nosso ópio em fótons.. Não as vemos apesar delas não
serem tão sinceras, mas exatamente porque não são. À custa de repetição, esta
beleza torna-se nosso roteiro de vida e de experiência de mundo. Com o tempo,
toda a chatice daquela noite de Natal será conservada apenas pela linda foto da
mesa posta e pessoas sorrindo e a mariposa da minha memória, ávida de luz, vai
se fixar naquilo, produzindo uma vida feliz como construção/reconstituição do
passado. Toda memória é um diálogo do presente com o passado e um processo de
criação. A luz certa, a roupa adequada e um claro sorriso ajudam muito a fixar
este momento, o único que desejo guardar.
Essena fez uma apoteótica carreira postando imagens melhoradas e preparadas.
Seu sucesso foi gigantesco. De repente por motivos pouco claros para grande público,
caiu no oposto e passou a duvidar da sua imagem e a revelar os andaimes da
construção. Como Ícaro, despencou rápido do sol para o impacto do mar.
O que seria mais notável no processo? Essena estetizou uma personagem e,
depois, tentou desconstruir, mas mantendo as fotos das redes sociais. Com isto
ela reafirmou como nosso mundo é dependente da imagem. Ao dizer antes “esta sou
eu” e agora “esta não era eu de verdade” e postando fotos nas duas situações,
ela continua na mesma gramática de produção de sentido. O real ou o imaginário
são, duplamente , dependentes da imagem no mundo líquido. A legenda pedindo
curtidas ou denunciando a armação, é, igualmente, suporte do único mundo
possível.
Essena mostrou que Dorian Gray pode rasgar o retrato do sótão, mas que nem este
gesto teatral o ajudará a responder quem ele é de fato. Essena é virtual,
porque ninguém desta geração consegue pensar o mundo fora do virtual ou sem
ele, ao menos. Uma Essena revolucionária, teria simplesmente apagado o perfil.
Haveria outra estratégia: bastaria não postar por um mês e ela teria submergido
no anonimato que o tempo fugaz das redes impõe. Mas, isto teria sido demais.
Nem a nova Essena, a autêntica (?) , aguentaria tamanho desprendimento. Ela foi
capaz de um gesto muito corajoso, mas não foi capaz de subverter a própria
lógica da exposição midiática. Isto talvez já não esteja ao alcance de uma
jovem criada no século XXI. Essena sorria com as curtidas de suas fotos
planejadas. Continua sorrindo com a Essena que desnuda a rede. Ela foi
protagonista nas duas situações. A jovem possui, agora, dois retratos de Dorian
Gray: o belo e o decadente. Ambos pertencem a ela e foram pintados por ela. Em
resumo: mentira e verdade para existirem, tem de ser fotografadas e postadas...