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Um grande número de leitores do blog manifestou-se indignado com o fato de que um presidente da República, conforme o artigo 86 da Constituição, “na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício das funções”.
Embora esteja ali no texto da Constituição há mais de 26 anos, desde outubro de 1988, esse artigo só chamou a atenção por ter sido invocado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki, em sua decisão de não considerar o pedido de investigação da presidente Dilma Rousseff sobre envolvimento nos crimes do petrolão — seguindo recomendação nesse sentido do procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
Sempre prestimoso, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, logo se apressou a explicar que Zavascki invocou também (e não exclusivamente) o artigo 86 como uma espécie de reforço jurídico para seu despacho, mas que, na verdade, “ela [Dilma] não foi investigada porque não há fatos, não há indícios, [e portanto] não há nada a arquivar”.
Muitos leitores do blog, e pelo que pudemos constatar, muitos brasileiros de todos os recantos, declararam-se furiosos não apenas contra o despacho do ministro, mas também por entenderem que a Constituição concede uma espécie de imunidade jurídica aos presidentes da República.
ENGANO! Pura balela!
Os presidentes da República são imunes a investigações criminais, enquanto ocupam o cargo, por fatos ANTERIORES à sua condição de chefe de Estado — e esse tipo de medida existe em quase todos os países democráticos. Visa, basicamente, a não permitir que uma administração seja tumultuada por processos, muitos deles sem qualquer fundamento, de cunho político-eleitoral, não relacionados à atividade presidencial.
A bronca contra a decisão de Zavascki e contra o artigo relaciona-se à interpretação de que, se houve, digamos, dinheiro sujo na campanha de Dilma à reeleição (estamos, esclareço, no terreno das hipóteses), como a campanha nada tinha a ver com “o exercício de suas funções” como presidente , mesmo na evidência de roubalheira a presidente escaparia de qualquer punição.
Há, contudo, um enorme PORÉM nessa história.
Os presidentes da República, em pleno exercício de seus poderes e prerrogativas, podem ser, sim, afastados do cargo em razão de crimes de responsabilidade definidos na mesma Constituição do tal artigo 86.
Vejam só o que diz o artigo imediatamente anterior ao 86:
“Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
“I – a existência da União;
“II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
“III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
“IV – a segurança interna do País;
“V – a probidade na administração;
“VI – a lei orçamentária;
“VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
“Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento”.
Essa lei especial já existe desde 1950. É a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra. Como dizem os juristas, ela foi “absorvida” pela Constituição de 1988 e, portanto, está em vigor.
E sabem como seria o processo, em caso de crime de responsabilidade — digamos, do crime de atentar contra “a probidade da administração”?
Quem decide sobre se houve crime de responsabilidade não é a Justiça, mas a Câmara dos Deputados.
Quem denuncia a ou o presidente não é o Ministério Público — qualquer cidadão no uso dos direitos civis ou pessoa jurídica pode apresentar acusação contra a presidente, perante a Câmara.
Oferecida a denúncia, e seguidos alguns trâmites previstos na lei, se constituiria uma comissão de deputados para examinar o caso, seriam ouvidas testemunhas e consultados documentos.
O parecer da Câmara seria levado ao plenário. Há todo um ritual a ser seguido segundo a lei, com número de oradores que podem falar defendendo uma e outra tese e vários outros detalhes.
“Se da aprovação do parecer [pelo plenário da Câmara] resultar a procedência da denúncia, considerar-se-á decretada a acusação pela Câmara dos Deputados”, diz a lei.
Aí, quem JULGA não é o Supremo, nem outro órgão do Judiciário, mas o SENADO DA REPÚBLICA, sob a presidência do presidente do Supremo Tribunal Federal.
Ou seja, tanto o legislador constituinte como o legislador comum, autor da lei que define os crimes de responsabilidade, decidiram que o assunto é POLÍTICO, e que deve ser resolvido NO PLANO POLÍTICO.
A decisão pode ser a de afastar o presidente, e está no artigo 34: “Proferida a sentença condenatória, o acusado estará, ipso facto destituído do cargo.” É o impeachment. O Senado ainda poderá fixar um prazo para que o presidente afastado seja inabilitado para ocupar cargos públicos.
A lei é minuciosa na descrição das diferentes possibilidades de crimes de responsabilidade, definindo nada menos do que 56 diferentes modalidades de hipóteses delituosas, espalhados por oito diferentes capítulos, que vão desde o capítulo I, “dos crimes contra a existência da União” até o capítulo VIII, que explicita os “crimes contra o cumprimento de decisões judiciárias”.
Do ponto de vista técnico, um pedido de impeachment contra a presidente Dilma que levasse em conta sua possível responsabilidade no escândalo do petrolão precisaria valer-se do capítulo VI, que trata “dos crimes contra a probidade na administração”.
E, dentre os sete delitos ali descritos, um dos seguintes dois, ou ambos: o do item 3, “não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição, ou, ainda mais ao ponto, o do item 7, vago o suficiente para ser interpretado de acordo com a temperatura social e o ambiente político: “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”
Dinheiro sujo de campanha eleitoral para alguém no exercício do cargo cabe perfeitamente neste item 7.