Neurociência
A falsa recordação de violência é um tema vastamente discutido por neurologistas, psicólogos e juristas. Ao site de VEJA, especialistas explicam a mecânica da memória e mostram como, para nós, lembranças verdadeiras ou mentirosas têm o mesmo impacto
Rita Loiola
Woody Allen e Mia Farrow com os filhos: para o cérebro, todas as memórias são iguais, sejam elas verdadeiras ou não(Time & Life Pictures/Getty Images)
"Quando tinha 7 anos, Woody Allen me pegou pela mão e me levou a um pequeno espaço mal iluminado do segundo andar de nossa casa. Ele disse para que eu deitasse com a barriga para baixo e brincasse com um trem elétrico do meu irmão. Então ele me agrediu sexualmente", afirma Dylan Farrow, filha adotiva do diretor e da atriz Mia Farrow, em um texto publicado no início de fevereiro no site do jornal The New York Times. Foi uma das primeiras vezes em que Dylan, hoje aos 28 anos, falou publicamente sobre o episódio ocorrido em 1992. Na época, a acusação foi investigada pela polícia com a ajuda de especialistas do Hospital Yale-New Haven, da Universidade Yale, nos Estados Unidos, que não comprovaram o abuso. No último dia 7, no mesmo jornal, Woody Allen negou o crime e acusou Mia de manipular as lembranças da filha.
Mais de duas décadas depois, o caso ainda divide a opinião pública. Seria possível que as memórias de Dylan fossem falsas? O tema é largamente discutido na psicologia jurídica. Desde os anos 1980, juristas e psicólogos perceberam que um dos recursos usados em litígios conjugais é a implantação de memórias falsas de abuso sexual nos filhos. No Brasil, estimativas de psicólogos ligados a varas de família indicam que até metade dessas acusações feitas durante divórcios conflituosos não são verdadeiras.
"Isso acontece quando um dos cônjuges tenta denegrir a imagem do outro. Trata-se do ataque mais perverso que pode ocorrer”, afirma o psicólogo Jorge Trindade, presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica. “Para quem acredita ter sofrido uma violência, verdadeira ou não, o impacto emocional é o mesmo: terrível."
Mecânica da recordação — Desde o início do século XX, estudos como o do psicólogo francês Alfred Binet, considerado pioneiro em testes de inteligência, indicam que a memória é formada por distorções. Nos últimos trinta anos, pesquisas comprovaram que grande parte das nossas lembranças é forjada. Recordações, reais e falsas, e esquecimentos são os elementos que, combinados, formam a memória. Esse é o funcionamento padrão das lembranças, em um cérebro normal. Ele faz de nossas recordações algo flexível e maleável para que o ser humano aprenda coisas novas, raciocine, tenha criatividade para enfrentar as situações do presente e inteligência para compreender o passado. Combinamos eventos, fatos, sons, imagens, nossos ou alheios, o que nos possibilita viver o dia a dia. É o que acontece quando preenchemos mentalmente uma frase com palavras que nosso interlocutor deixou de dizer. No futuro, provavelmente, a lembrança será da sentença inteira, uma falsa recordação que auxilia a conectar episódios vividos. Tempo e influências externas tingem a memória, tornando-as adequadas ao momento vivido.
Menores de 6 anos são mais suscetíveis a criar falsas lembranças, porque, nessa idade, eles ainda não distinguem fantasia e realidade. Mentiras de abuso sexual normalmente são sugeridas por algum adulto que tenha proximidade afetiva e seja percebido como autoridade. Nesse papel entram pais, professores, amigos mais velhos, conselheiros tutelares ou profissionais de saúde. Na maioria das vezes a sugestão é intencional, mas também pode ser feita sem dolo. É o caso da formulação de questões que mais afirmam do que interrogam, e que têm influência na formação das reminiscências. "A forma como uma pergunta é feita vai influenciar a resposta e pode, inclusive, contaminar a memória", afirma a psicóloga Lilian Stein, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). "Com o tempo, nos lembramos, de fato, de coisas que não aconteceram."
Como confirmar o abuso — Denúncias de violência sexual infantil são difíceis de comprovar. A maior parte dos casos acontece sem testemunhas, são cometidas por pessoas próximas à criança e não deixam marcas físicas — o relato da vítima é a única evidência. Como as lembranças são formadas por um sistema dinâmico e suscetível a mudanças, não existe um método confiável para averiguar sua veracidade. O instrumento recomendado são avaliações e entrevistas, feitas por psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras e promotores. Uma criança que é denunciada como vítima de violência sexual tem pelo menos sete encontros com esses profissionais, até chegar ao juiz.
"As perguntas são abertas, para a criança poder falar qualquer coisa ou mesmo não falar. Perguntas do tipo 'sim ou não' ou 'certo/errado' são a última opção", afirma Cátula Pelisoli, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Adolescência da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). "Alterações fisiológicas medidas em um detector de mentiras ou em um teste poligráfico não funcionariam nesse caso, porque a pessoa acredita na memória. Exames de neuroimagem também são descartados, pois o cérebro recria os mesmos padrões em casos verdadeiros e falsos."
Em alguns Estados americanos e em países como Dinamarca ou Finlândia, as entrevistas feitas em casos de suspeita de abuso são padronizadas. No Brasil, foi lançado em outubro de 2013 um instrumento que pode ajudar a distinguir memórias, resultado de pesquisas de doze juristas, psiquiatras e psicólogos do Rio Grande do Sul. O método, um questionário chamado Escala de Alienação Parental, busca identificar o processo de induzir uma criança ou adolescente a detestar o pai ou a mãe. "Esses instrumentos apresentam um grau interessante de confiabilidade, mas ainda precisam ser mais estudados em casos de abuso sexual", diz Cátula.
De acordo com um estudo feito pelo psicólogo Antonio Serafim, do Núcleo Forense do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, os principais sinais de abuso são depressão, ansiedade e fobias. Meninas podem ter alterações no sono e na alimentação, além de apresentar erotização do comportamento, enquanto garotos mostram-se isolados, agressivos e com distúrbios de conduta. "Crianças com suspeita de abuso normalmente sinalizam dificuldade em lidar com as figuras abusadoras e demonstram insegurança", afirma Serafim.
Até Freud, o pai da psicanálise, confundiu-se acerca da memória de relatos de abuso sexual. No início de seus estudos, em 1890, ele formulou a hipótese de que suas pacientes histéricas teriam sido vítimas do crime. Essa ideia simplesmente desaparece em seus escritos após 1897, substituída pela fantasia incestuosa — em vez de sofrer abuso, as pacientes teriam apenas ilusões dessa violência. Pouco tempo depois, os pesquisadores perceberiam que não há meios de diferenciar, no cérebro, lembranças falsas das reais.
Falsas reminiscências em adultos — Embora crianças pequenas sejam mais suscetíveis à criação de memórias, o processo também acontece com adultos — e com alta frequência. Em 2005, um estudo da pesquisadora Lilian Stein descreveu a implantação de memórias em adultos. Sua equipe apresentou a cerca de 500 participantes uma lista de palavras que deveriam ser recordadas minutos depois. Em seguida, pediu para que os termos fossem marcados em folhas de papel. Nessa última etapa, os participantes selecionaram palavras que jamais apareceram nas primeiras listas, como aquelas semanticamente próximas ao assunto ou que resumiam o tema. Tratava-se de falsas memórias.
Momentos importantes da vida, como o nascimento de um filho ou a morte dos pais, podem ser invadidos por lembranças não verdadeiras tanto quando eventos banais. Em 1995, um das principais estudiosas do assunto no mundo, a psicóloga Elizabeth Loftus, da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, verificou em um experimento que recordações emocionalmente fortes também podem ser implantadas. Para isso, ela recrutou 24 pessoas e, com a ajuda das famílias, apresentou a elas três eventos que teriam acontecido na infância. Dois deles eram reais, mas o terceiro, um episódio dramático em que a criança ficava perdida em um shopping, foi inventado pela pesquisadora. Após o relato, um quarto dos participantes afirmou lembrar-se do fato. "Na vida real, muitas pessoas são induzidas a lembrar-se de eventos múltiplos e impossíveis", afirma Elizabeth.
O que diz a neurociência — Nos estudos atuais de neurociência e neurobiologia, falsas lembranças são um tema central. Há décadas os pesquisadores perceberam que reminiscências estão distantes de ser como uma máquina fotográfica ou filmadora que registra os acontecimentos e os arquiva. "Memória não é uma gravação, mas sim a representação mental de um evento que ocorreu. E, como representação, não há diferença entre o que aconteceu e o que alguém acredita que aconteceu", afirma o neurocientista Martin Cammarota, pesquisador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Como parte dessa representação psíquica, há dados objetivos que podem ser verificados — como em uma foto. Já informações sutis passam despercebidas pelos sentidos. Aí entram as falsas lembranças, para completar os "brancos" do cérebro. Esse é o processo de armazenamento de qualquer uma de nossas memórias, seja ao completar uma palavra que o interlocutor deixou de dizer em um diálogo que aconteceu há poucos segundos, seja para reconstruir um evento de anos atrás.
Os estados emocional e físico também são essenciais na formação de lembranças. Estar ansioso, triste, alegre ou apressado pode manipular mesmo dados objetivos. "Quando falamos de falsas memórias, parece que elas são feitas de propósito. Mas elas fazem parte processo de recordar. Ser incorreta não quer dizer que não seja verdadeira", afirma Cammarota.
Como um processo composto de vários elementos, as lembranças não existem isoladamente. Dados do passado se misturam no momento em que uma memória está sendo formada. Essas lembranças são aquelas que ajudam a compreender o presente e projetar o futuro. No hipocampo, área do cérebro responsável pela memória, as reminiscências são reconstruídas, editadas e renovadas. E, a cada vez que evocadas, elas se modificam — novos elementos são perdidos ou incorporados.
"Recordações dependem do que esperamos delas. Ao contrário de uma foto ou de um documento com começo e fim, trata-se de sistemas dinâmicos, com um conteúdo que se modifica ao longo do tempo", diz o neurocientista. "Memórias não são estáticas no tempo nem no cérebro." Assim, longe de parecer um computador repleto de arquivos que poderiam ser acessados e abertos a qualquer momento, a memória é mais semelhante a um baralho. Ao escolhermos um naipe, várias outras cartas saem ao mesmo tempo. Em diversos estudos detalhando imagens de observações por ressonância feitos nos últimos anos, cientistas perceberam que lembranças vívidas produzem ampla ativação no cérebro, envolvendo áreas sensoriais, emocionais e executivas.
Em um artigo publicado em 2013 na revista The New York Review of Books, o neurologista britânico Oliver Sacks, professor da Escola de Medicina da Universidade de Nova York, elencou uma série de pesquisas que comprovam o quanto os seres humanos precisam desconfiar de suas memórias. Entre elas, as de violência sexual. "Não existe um modo pelo qual os acontecimentos do mundo possam ser transmitidos ou gravados diretamente em nossa mente; eles são experimentados e construídos de modo altamente subjetivo, que é diferente em cada indivíduo e reinterpretado ou revivido diferentemente a cada vez que são recordados", diz Sacks. "Com frequência nossa única verdade é a verdade narrativa, as histórias que contamos uns aos outros e a nós mesmos — histórias que reclassificamos e refinamos sem cessar."