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Ai, que preguiça! Aqui e ali se pergunta por que não escrevi sobre o “primeiro beijo gay” nas novelas, se estou fugindo de temas polêmicos… Ô se estou!!! Como podem ver, aqui, na Folha ou na Jovem Pan, só tenho aplaudido consensos, não é mesmo? Tenham paciência! Mas se é para embarcar na polêmica dando algum relevo ao que não tem a menor importância, então vamos tratar do que interessa. Não escrevi porque estava tomando sol, entendem? Preciso elevar a minha vitamina D… Tenho, nos períodos de inverno, aquele branco meio cadavérico, mas não porque não goste de sol. É falta de tempo mesmo. Vi depois. Beijo gay? Desculpem a falta de jeito e talvez alguns fiquem chocados, mas beijo sem língua não vale.
O beijo entre Félix (Matheus Solano) e Nico (Thiago Fragoso) foi só um pouquinho mais ousado do que o trocado pelos atores Vida Alves e Walter Forster na novela “Sua Vida me Pertence”, de 1951, dez anos antes de eu nascer. E, santo Deus!, eu já tenho 52! Foi um beijo que não ousou dizer seu nome. Terno, sim, todo casinha, uma transa, assim, literalmente papai-e-papai — num mundo, aliás, em que, se notaram bem, mulher só servia como empregada: Félix, Nico, o pai rabugento e estropiado, os dois garotos e… a mulher de uniforme branco. Se houvesse um cachorrinho na casa, não seria uma cadelinha, pelo visto. E já trato da misoginia escancarada dessa novela.
Pra começo de conversa, não é o primeiro beijo gay em novela. Já houve um lésbico numa da Record, não? Segundo consta — e não vi mesmo —, há duas jovens se pegando no BBB, com beijos de boca destrancada, não é isso? Duas questões, então, se colocam:
– beijo gay de mulheres não vale? Não é revolucionário o bastante?
– beijo entre mulheres não provoca frisson político? Por que não?
– beijo gay de mulheres não vale? Não é revolucionário o bastante?
– beijo entre mulheres não provoca frisson político? Por que não?
Explico. Porque as mulheres, vejam vocês, ainda são, sim, discriminadas de várias formas no país e na política. A militância gay — e não venham torrar a minha paciência com mimimi — não gosta muito das lésbicas, como elas sabem e como eles sabem. Mais: o beijo lésbico não gera muita confusão porque, no fim das contas, boa parte da macharia “curte o lance” — não é mesmo? E as mulheres são oferecidas, a exemplo do que ocorre no BBB, à “espiação” (se me permitem, com “s” mesmo…) e à expiação. Ou por outra: o rala-e-rola entre as moças serve ao voyeurismo masculino; aquele feito por homens não costuma excitar a imaginação das mulheres — não há testemunhos a respeito que eu saiba; não interessa aos homens heterossexuais e é dirigido exclusivamente ao público gay — aos, em suma, homens, que seguem sendo protagonistas, porque homens, da militância gay.
No fim das contas, seja pela qualidade do beijo — aquela coisa de boca fechada, quase com nojinho —, seja pelo protagonismo político que a coisa ganhou, e dado que já houve beijo lésbico, bem mais quente —, foi, de verdade, um beijo ainda machista, de uma cultura idem. Porque, convenham, ninguém gosta tanto do universo masculino como os gays, certo?
Essas coisas são tramas do marketing, entendo. Foi um primeiro passo. Agora, aguarda-se algum tempo até a língua, quem sabe?, a depender da reação do público. Aqui e ali, no entanto, vejo gente dizendo: “Ah, mas foi bonito, né, gente? Não pareceu sacanagem”. Claro que não! Gays quando se beijam estão fazendo a revolução universal. Ah, tenham paciência!
A novela
Vi pouco a novela porque, como podem notar, estou sempre trabalhando naquele período. E não vai preconceito nenhum. Já acompanhei algumas com interesse. Gosto de Manoel Carlos, o que vem aí… Não sei como vai ser desta vez. Suas tramas costumam ter poucas peripécias e apelar quase nada ao “maravilhoso”. Passei a acompanhar alguns capítulos da novela de Walcyr Carrasco porque me falaram da atuação espetacular do ator Matheus Solano, que me pareceu, de fato, muito bom, com um tempo para a comédia e para a ironia de quem entende o seu ofício.
Vi pouco a novela porque, como podem notar, estou sempre trabalhando naquele período. E não vai preconceito nenhum. Já acompanhei algumas com interesse. Gosto de Manoel Carlos, o que vem aí… Não sei como vai ser desta vez. Suas tramas costumam ter poucas peripécias e apelar quase nada ao “maravilhoso”. Passei a acompanhar alguns capítulos da novela de Walcyr Carrasco porque me falaram da atuação espetacular do ator Matheus Solano, que me pareceu, de fato, muito bom, com um tempo para a comédia e para a ironia de quem entende o seu ofício.
Dá para compreender por que sua personagem chamou tanto a atenção. Os demais eram de uma pobreza dramática e agrediam de tal sorte a verossimilhança que beiravam o patético. O pai homofóbico, representando por Antonio Fagundes (nada a ver com as qualidades do ator), era um caricatura grotesca. Aliás, tudo bem penado — chamem pela memória —, o único casal, digamos, convencional, próximo da esmagadora maioria dos brasileiros, eram Paloma e Bruno, tão excitantes como um pudim de isopor. No fim das contas, a equipe de Carrasco não tinha, de verdade, nada a escrever sobre os dois porque não consegue, em suma, ver transcendência nenhuma no amor de um homem e de uma… mulher.
Os demais casais heterossexuais que se firmaram tinham sempre uma nota de rodapé de “diferença”: a ricaça mais velha pega o motorista fortão; o médico recém-formado, uma enfermeira coroa; um alto executivo escolhe uma ex-chacrete exuberante da periferia; uma periguete pobre e maluca se interessa por um desocupado profissional que depois vira funkeiro ou sei lá o quê; até a mãe de família, mulher do dono de um boteco, se revela uma ex de um diretor de hospital, sai de casa para viver o romance, volta para o marido bronco, do nada, sem revelar nem por que foi nem por que voltou…
Mas nenhum casal representou, digamos, a heterossexualidade que se mostrava doentia e decadente como César, o pai homofóbico (severamente punido; quem mandou?), e Aline, aquela que, vá lá, inicialmente, tinha motivos para se vingar, mas foi além da conta — uma psicopata talvez. Para ela e para ele, não houve remissão, não! De jeito nenhum! César é severamente punido por seu amor à moda antiga — e, até onde se sabe, ele foi um bom marido para a jovem mulher, sinceramente apaixonado. Termina seus dias dependente do filho que tanto desprezou.
Deem um bom motivo para a mudança da “bicha má”. Essa história de que Félix foi salvo pelo público é conversa mole. Errado! Walcyr Carrasco conduziu a história para fazer da personagem a verdadeira vítima — vítima do pai homofóbico. Ele só jogou uma criança numa caçamba, internou a irmã num hospício, tramou o sequestro da sobrinha, chantageou pessoas e até tentou matá-las porque “pápi porderoso” não lhe dizia um “eu te amo”. Que o tenha feito ao som de Mahler, numa citação completamente despropositada do filme “Morte em Veneza”, de Visconti, só serve para esconder o ridículo numa gramática aparentemente grandiosa, profunda, humana.
Já as mulheres… Pobres mulheres! Uma das protagonistas era uma corneada profissional e acaba se consolando nos braços do motorista filósofo, um ex-bandido. A mulher da bicha continuou, na prática, garota de programa — só no último capítulo ela se redime, para cair nos braços do… mordomo! Walcyr Carrasco parece ser fascinado pela ideia dos amores, digamos, ancilares. Não por acaso, Aline era, originalmente, secretária de César.
Sempre que a palavra “bicha” foi empregada em tom pejorativo, ou foi na boca de César — criado para causar repulsa — ou do próprio Félix. Ou, em suma, era “coisa de bichas” (e elas podem se xingar entre si que ninguém tem nada com isso; se, um dia aprovarem a tal lei anti-homofobia, isso não renderá processo) ou de gente detestável. Já a tal Aline, coitada, foi xingada de “piranha” na novela pelas pessoas as mais beatas — incluindo a personagem do excelente Ary Fontoura, cujo nome não lembro. Curioso: Aline morre eletrocutada, sem perdão; Félix encerra a novela, de mãos dadas com o pápi, ao som de Mahler, dizendo “eu te amo”. O que deu o clique na cabeça do malvado? Ter ido vender hot-dog na periferia? Ocorre, meus queridos, que Félix era essencialmente bom; o pai é que tinha feito dele um monstro.
E, claro!, não poderia deixar de falar de Amarílis, aquela que tinha vocação para destruir o romance de gays e lhes roubar a criancinha, impedindo-os de formar aquela Família Doriana mostrada antes do beijo gay sem língua. Psicopata? Mulher má? Personagem frequente na vida de casais gays? Sei lá eu. O fato é que aquela que transformou seu útero numa espécie de gaveta, mala ou estufa deveria, a gente ficou sabendo, se conformar com o seu papel de gerar crianças para o casal de machos.
Beijo gay? Não tem a menor importância e, reitero, do jeito como foi dado, foi mais machista do que propriamente revolucionário. Só demagogos de quinta fingem de escandalizar com isso. Relevante nessa novela — e cumpre verificar se será uma tendência na Globo — é o desdém pela chamada “heteronormatividade”, o elogio das famílias as mais exóticas — desde que não seja a ainda convencional — e, insisto, a misoginia, o desprestígio escandaloso a que foram submetidas as mulheres, quase sem exceção.
Até um terrorista palestino encontrou seu lugar no mundo dos justos. César, o “homofóbico”, termina seus dias babando e chorando; Aline, a “piranha”, foi eletrocutada. Amarílis, a “cobra”, acaba sozinha. Ah, sim: o diretor administrativo de um hospital contrata o diretor clínico, que acabara de conhecer, e já é convidado para um uísque, entendem? Fossem homem e mulher heterossexuais, estaria caraterizado um caso de assédio… Sendo como é, não.
Mas o Brasil parou, segundo o Fantástico, para aplaudir “o primeiro beijo gay”, ainda que a novela tenha sido uma chanchada heterofóbica e, acima de tudo, misógina. Vem aí “Em Família”, de Manoel Carlos. Se houver heterossexuais andando sobre duas patas, logo vai aparecer alguém para apontar um perigoso retrocesso.
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