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1. O Brasil é capaz de grandes inventos ( apesar de nunca termos ganhado um Nobel). O mais recente são os guetos às avessas. Gueto é assim: uma prisão. Na de Pedrinhas, em São Luiz do Maranhão, a governadora declarou que “até setembro, Pedrinhas tinha 39 mortes, estava portanto dentro do limite que se esperava”. Segundo Dorrit Harazim, “caso ela tenha se expressado bem, isso significa que apesar de estar no comando do estado há cinco anos a governadora opera com a expectativa de uma taxa anual de 39 presos chacinados em seus presídios”. Muitos, decapitados.
2. No seu Palácio das Princesas, outra forma de prisão ou gueto, aquela que está lá dentro detida (portanto, vernacularmente, a detenta) resolveu licitar por milhões a aquisição de uísque 12 anos, lagosta, caviar e outros manjares, enquanto crianças eram assassinadas nas ruas, a mando dos presídios. Então, ruas é que passam a ser guetos, já que seu palácio é um shopping de delícias.
3. Agora, os shoppings de São Paulo conseguiram liminares para impedir a entrada de quem o “seu” guarda designar como suspeito a partir do seguinte cardápio: jovem, negro, pardo, mestiço, caboclo, cafuzo. O mesmo fez em 1910, quando foi fundado, o Botafogo, do Rio, ao proibir entre seus associados, “a presença de trabalhadores braçais”, ou seja, os mesmos “suspeitos” acima que não poderiam praticar o então nobre futebol.
4. Ora, os governos FHC e Lula (que deu continuidade ao plano econômico de seu antecessor) promoveram a ascenção social das classes, embora no campo educacional isto não tenha ocorrido. E agora, esta gente toda não pode frequentar os shoppings? Vamos criar um apartheid social no Brasil, quando o último deles, o da África do Sul já se esgotou?
5. No artigo publicado, em dezembro, no jornal espanhol El País, a jornalista Eliane Brum mostra que, “quando a juventude pobre e negra das periferias de São Paulo ocupa os shoppings anunciando que quer fazer parte da festa do consumo, a resposta é a de sempre: criminalização. Mas o que estes jovens estão, de fato, “roubando” da classe média brasileira?”
6. Diz o El País: “O Natal de 2013 ficará marcado como aquele em que o Brasil tratou garotos pobres, a maioria deles negros, como bandidos, por terem ousado se divertir nos shoppings onde a classe média faz as compras de fim de ano. Pelas redes sociais, centenas, às vezes milhares de jovens, combinavam o que chamam de “rolezinho”, em shopping próximos de suas comunidades, para “zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras” ou “tumultuar, pegar geral, se divertir, sem roubos”. No sábado, 14, dezenas entraram no Shopping Internacional de Guarulhos, cantando refrões de funk da ostentação. Não roubaram, não destruíram, não portavam drogas, mas, mesmo assim, 23 deles foram levados até a delegacia, sem que nada justificasse a detenção.”
7. Neste fim de semana, a polícia usou bombas de gás e balas de borracha em ação contra “rolezinho” no shopping Itaquera, de São Paulo. Cerca de 150 deles foram revistados, embora nada se encontrou que atentasse à moral e bons costumes, ou à proposta de atos de vandalismo ou todos estes epítetos com que estes jovens serão brindados, a partir de agora.
8. O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira faz uma provocação precisa: “Se fosse um grupo numeroso de jovens brancos de classe média, como aconteceu várias vezes, seria interpretado como um flash mob?” Designações como “maloqueiros”, “vadios”, “prostitutas” são os comentários que surgem em redes sociais, revelando o racism embrenhado em parte da população– tal como expus em meu recente artigo “Joaquim Barbosa é preto e de origem pobre”.
9. O Brasil é preto, índio e de origem pobre. A tal ponto que somos o único povo cuja designação não identifica quem aqui nasceu, mas quem aqui trabalha. Não somos, como deveríamos ser, brasilienses ou brasilianos, mas brasileiros, operários, escravos que saqueiam e carregam, toras às costas, o que brotou e cresceu na terra generosa. Agora, somos nós, os próprios brasileiros, que aprisionamos os pobres nas ruas, transformando as ruas em guetos. E transformando shoppings, sob a tosca justificativa de serem lugares privados, em guetos também.
10. Será que não há uma cabeça pensante, além daquelas decapitadas, para buscar soluções mais equilibradas e amenas no trato com a população “encarcerada” em favelas e periferias do país? Será que o jogo de cintura para tomar decisões só pode existir no samba ou no futebol?Ou, mesmo não havendo nenhum crime, os decapitados do poder público e privado vão criar um invento jurídico que criminalize a zoada da garotada e acabe, de uma vez por todas, com o constitucional direito de ir e vir?
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