Publicado na edição especial de VEJA 45 anos que está nas bancas
AUGUSTO NUNES
“Presidência é destino”, dizia Tancredo Neves a quem imaginava existir alguma rota segura para o coração do poder. Mas o destino dá preferência a quem lhe facilita o trabalho, usando com sabedoria o livre-arbítrio, ensina a edição especial de VEJA datada de 16 de janeiro de 1985 mas distribuída no dia 12 — 72 horas antes da vitória do candidato da oposição no Colégio Eleitoral. Nela se reconstitui em nove capítulos, que somam 33 páginas, a caminhada que depositou o governador de Minas Gerais ao pé da rampa do Palácio do Planalto, bruscamente interditada por sua morte. Parece um trepidante filme de ação com muitos momentos de suspense. O elenco é da melhor qualidade, mas nenhum dos atores ofusca o protagonista: um septuagenário calvo, franzino e introspectivo que, desprovido de superpoderes, recorre à astúcia para contornar as sucessivas pedras no caminho.
A mais extensa reportagem política publicada por VEJA provou que, naquele Brasil surreal da primeira metade dos anos 80, que já não era uma ditadura e ainda não se tornara uma democracia, só um Tancredo de Almeida Neves conseguiria materializar a façanha resumida nas seguintes linhas: “Nesta terça-feira, o mineiro Tancredo Neves, 74 anos, será eleito presidente da República pelos 686 integrantes do Colégio Eleitoral. (…) Pela primeira vez em 21 anos, um civil ocupará a chefia do governo brasileiro”. Só um Tancredo conseguiria avançar na direção do Planalto, sem tropeços nem tombos, percorrendo trilhas atulhadas de militares sensatos e generais incapazes de enxergar o que ocorria a um palmo do quepe, políticos sagazes e bisonhos caçadores de votos, mentes brilhantes e perfeitas cavalgaduras, homens de bem e trapaceiros incuráveis. só um Tancredo poderia ter sobrevivido a um ano singularíssimo como 1984.
Entre janeiro, “quando as primeiras multidões começaram a rodear os palanques de onde se pedia a volta do sufrágio universal”, e dezembro, quando a oposição já se preparava “para se transformar em governo através do sistema de eleição que amaldiçoara”, o conciliador extraordinariamente astucioso fez sempre a escolha certa na hora da encruzilhada. Porque “não se tiram os sapatos antes de chegar ao rio”, esperou passar a campanha das Diretas Já, esperou que as rachaduras no PDS governista se escancarassem, esperou que os líderes do PMDB induzissem Ulysses Guimarães a desistir do sonho presidencial, esperou que o partido inteiro se convencesse de que a solução estava no palácio das Mangabeiras. Só no fim de junho aceitou candidatar-se à sucessão de João Figueiredo, com o apoio da oposição e de um bloco de ex-governistas suficientemente numeroso para garantir um duelo eleitoral de verdade.
Na margem do rio, o candidato em campanha tratou de mostrar que “ninguém vai ao rubicão para pescar”. Escolheu como candidato a vice o senador José Sarney, que renunciara à presidência do PDS. E, como “a escolha do adversário quase sempre é mais importante que a escolha de aliados”, escolheu Paulo Maluf para o duelo derradeiro. Especialista em métodos eleitorais heterodoxos, o ex-governador paulista se julgava “imbatível” em disputas indiretas. “Ele nunca enfrentou profissionais”, avisou Tancredo. O candidato do PMDB sempre confiou na previsão feita no fim de 1982 pelo senador Jorge Bornhausen, durante uma conversa com José Roberto Guzzo, diretor de redação de VEJA, e Elio Gaspari, diretor adjunto: “Muita gente dentro do partido não vai querer se associar ao repúdio que o Maluf gera. O PDS racha”, diz Bornhausen na página 33 da edição especial. (A pedido do senador, foram omitidas as razões do repúdio, quase todas vinculadas ao Código Penal.) Entre setembro e novembro de 1984, enfim, Tancredo definiu os atalhos que desmataria para livrar-se da assombração recorrente na política brasileira: o golpe militar tramado para prorrogar o mandato de Figueiredo.
Ao lado de Etevaldo Dias, chefe da sucursal de Brasília, e dos repórteres Guilherme Costa Manso e Henrique José Alves, participei do levantamento jornalístico iniciado em 15 de novembro de 1984 e encerrado cinquenta dias, 54 entrevistas e 150 horas de conversa depois. Só informações confirmadas por mais de uma fonte se juntaram às colhidas paralelamente por Guzzo e por Gaspari (que, entre outros espantos, exumou o esqueleto golpista que acabara de ser sepultado longe dos olhos do país). Algumas revelações foram embargadas pelos informantes para poupar de constrangimentos antigos parceiros. No encontro com o ministro Mário Andreazza, por exemplo, Tancredo e Antonio Carlos Magalhães não se limitaram a marcar uma conversa a dois quando o anfitrião, derrotado por Maluf na convenção do PDS, foi ao banheiro. “Isto não é coisa para amadores”, murmurou ACM. “Melhor tratar disso sem ele”, concordou Tancredo. Poucas e irrelevantes, tais omissões não fizeram falta à procissão de segredos revelados, ilustrada por fotos e charges em preto e branco. Destacadas pela dupla moldura, rimavam com um Brasil que havia tempos oscilava entre a sombra e a claridade.
A reportagem sobre a sucessão de 1985 é muito mais que uma fonte de consulta para historiadores. É a história definitiva em 33 páginas de revista.
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