domingo 08 2013

O livro de Saïd Farhat conta como era o presidente que gostaria de ser esquecido

Veja.Com


PUBLICADO NA EDIÇÃO DE VEJA DESTA SEMANA
“Esses, pelo menos, não saíram daqui dizendo as coisas diferentemente do que conversamos”, comentou com um assessor o general João Baptista de Oliveira Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Informações do governo Ernesto Geisel, no fim da tarde de 31 de janeiro de 1978. “Esses” eram Guilherme Figueiredo e Saïd Farhat. E “as coisas que saíram dizendo” foram as respostas dadas pela dupla às perguntas dos jornalistas interessados em saber o que haviam conversado o militar já escolhido para encerrar o ciclo dos generais iniciado em 1964, o escritor e teatrólogo que acumulava o posto de irmão mais velho do futuro presidente e o risonho acreano que suspendera as atividades de empresário e jornalista para dirigir a Embratur.
O resgate do episódio é um dos momentos mais saborosos e reveladores de Tempo de Gangorra (Editora TagEtLine;472 páginas;45 reais), em que Saïd Farhat, como informa o subtítulo, apresenta “uma visão do processo político-militar no Brasil de 1978 a 1980″. O confronto entre o que ouviram os jornalistas e o que escutaram as paredes do gabinete no 4° andar do Palácio do Planalto sugere que, se gostou da lealdade dos visitantes, Figueiredo gostou mais ainda de como as coisas foram ditas. E apreciou, sobretudo, o que os visitantes deixaram de dizer.
A imprensa ficou sem saber, por exemplo, que Guilherme, então funcionário da Embratur, só invocou a necessidade de tratar de questões ligados ao turismo para conseguir agendar a audiência de 15 minutos (que se transformariam em quase 70) em que apresentou Farhat ao irmão. Eles combinaram que tentariam, com a exposição de ideias e conceitos inseparáveis do liberalismo clássico, ajudar a pavimentar o caminho da abertura política que seria percorrido pelo quinto (e último) presidente do regime militar. A conversa a três invadiu sem cautelas assuntos perigosos demais para frequentar sem disfarces entrevistas coletivas.
Farhat confirmou, por exemplo, que havia sugerido ao general alguns retoques na imagem. Mas omitiu o comentário de Figueiredo depois de aconselhado a abandonar as meias verdes que terminavam no meio da canela: “Qualquer dia, vocês vão querer que eu ande por aí de collant”. No noticiário do dia seguinte, graças à habilidade de um diplomata vocacional, clarins soaram como flautas, bumbo virou marimba e a batucada ficou parecida com um minueto. Reinterpretado por Farhat, Figueiredo pareceu bem melhor que na partitura original.
AS AMEAÇAS DOS LIBERTICIDAS
O futuro presidente encontrara seu mais perfeito tradutor, mas Farhat soube disso só no segundo encontro, em 8 de junho de 1978, quando foi convidado a juntar-se à equipe do candidato. Primeiro como “assessor polivalente”, depois como porta-voz do presidente eleito, enfim como ministro da Comunicação Social, Farhat conviveu intensamente, durante dois anos e meio, com o “o homem que cumpriu o juramento de fazer deste país uma democracia”.
“A devolução do poder aos civis ocorreu graças à teimosia de Figueiredo”, garante. A declarada simpatia pelo personagem às vezes induz o autor a enxergar no desbocado oficial da Cavalaria um audaz cavaleiro andante. O olhar é amistoso, mas sempre honesto. O livro comprova que só um turrão incurável poderia completar o trabalho de desmonte iniciado por Geisel, outro teimoso de nascença.
Os dois enfrentaram zonas de turbulência forjadas pela involuntária parceria entre ultraconservadores fardados incapazes de admitir a agonia do regime e oposicionistas sem paciência para avaliar o tamanho do perigo a um palmo do nariz. A anistia de 1979, por exemplo, descontentou a esquerda e açulou o ânimo beligerante da linha dura. E, à exceção de Tancredo Neves, revela Farhat, ninguém aceitou apertar a “mão estendida” por Figueiredo num dos primeiros discursos como herdeiro do trono.
Pena que Farhat não tenha detalhado as ameaças anônimas de que foi vítima, nem identificado claramente os liberticidas que seguiram em ação até a restauração da democracia. Mas os fatos que narra confirmam que, efetivamente, ele “viu o bastante para perceber o quanto estivemos arriscados, mais de uma vez, a tudo perder”. Farhat diz que lhe coube “verbalizar a vocação democrática do presidente e, sempre que encontrava caminho aberto, aprofundar razões, reduzir a escrito seu pensamento político, muitas vezes inexpressão”.
VIAGEM PARA LONGE DAS TREVAS
Fez muito mais do que isso. E foi muito além da repaginação que trocou João Baptista de Oliveira Figueiredo por João Figueiredo, demitiu os pesadíssimos óculos escuros e, claro, mudou tanto a cor quanto o comprimento das meias. Graças à insistência de Farhat, o oficial do Exército que chefiara em silêncio o Gabinete Militar de Emílio Medici e o SNI de Ernesto Geisel começou a conversar com jornalistas ─ e o país descobriu que o general caladão camuflava um presidente que falava até demais.
Recorrendo a complicadas acrobacias semânticas, Farhat frequentemente teve de minimizar, traduzir ou revogar declarações que consolidaram o estilo de alguém que se definia como “rude e franco”. Não foi fácil explicar por que o presidente preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo. Ou por que daria um tiro na cabeça se tivesse de sobreviver ganhando o salário mínimo. Ou, ainda, por que Figueiredo, depois de prometer a ressurreição da democracia num épico pronunciamento redigido por Farhat, brindou com a advertência famosa o jornalista que lhe perguntara o que faria se alguém se opusesse ao que havia prometido: “Eu prendo e arrebento”.
Somados os governos aos quais serviu e o que chefiou, ninguém ficou mais tempo no Palácio do Planalto do que Figueiredo. Nunca foi feliz. Aceitou a contragosto a indicação para a presidência, que qualificou sinceramente de “missão irrecusável”. Para não repassar a faixa presidencial a José Sarney, que considerava “um traidor”, deixou o palácio pela porta dos fundos. Longe do poder, enfurnou-se num apartamento no Rio de onde saía apenas para os fins de semana no sítio em Petrópolis ou para caminhadas solitárias no calçadão do Leblon.
Quando percebia que alguém o reconhecera, evitava a interceptação com o mesmo drible: “Sou parecido com quem você está pensando, mas não sou ele”. Até morrer em 1999, perseguiu o desejo manifestado na entrevista concedida a Alexandre Garcia semanas antes de encerrar o mandato: “Quero que me esqueçam”. Saïd Farhat preferiu esquecer o pedido, ouvir o apelo da história e lembrar o presidente que conheceu. O retrato produzido pelo livro ajuda a iluminar a última etapa da viagem para longe das trevas.

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