domingo 08 2013

Getúlio Vargas - A esfinge decifrada

Veja.Com


PUBLICADO NA EDIÇÃO DE VEJA DESTA SEMANA
“Gosto mais de ser interpretado do que de me explicar”, informa uma anotação no diário que reúne milhares de frases manuscritas por Getúlio Vargas entre 1930 e 1942. E os autores dos livros sobre Getúlio sempre preferiram a interpretação à cansativa busca de informações que ajudassem a decifrar a esfinge, berra a imensidão de obras inspiradas no maior personagem do Brasil do século XX. A fusão do silêncio e da preguiça confinou Getulio, por quase sessenta anos, em palavrórios deformados pela veneração, pelo afeto, por rancores, pela miopia ou pela vassalagem. Só agora o homem que transformou o tempo em cúmplice foi resgatado do universo imaginário por uma biografia genuína. Getúlio ─ Dos Anos de Formação à Conquista do Poder (Companhia das Letras; 629 páginas; 52,50 reais) conta o caso como o caso foi. Até que enfim.
O primeiro volume da trilogia concebida pelo cearense Lira Neto (autor também de biografias da cantora Maysa e do Padre Cicero) descreve a trajetória da lenda entre o outono de 1882, quando chegou ao mundo, e a primavera de 1930, quando chegou ao poder. (O segundo volume tratará do período que vai de 1930 e 1945  e o ultimo se estenderá até a morte em 1954.) Em dois anos e meio de pesquisas, que incluíram consultas a fontes primárias e incursões por estantes ainda indevassadas, Lira Neto juntou tantas informações relevantes que não sobrou espaço para análises acadêmicas e especulações sem serventia. Melhor para os leitores.
Escritor talentoso, Lira Neto enfileira episódios eletrizantes que atormentaram uma república ainda na infância e enfraquecida pelo parto prematuro. A narrativa lembra o roteiro de um filme de ação que saiu da tela para provar que a realidade pode ser mais turbulenta e surpreendente que qualquer história inventada. Getúlio precisou remover, contornar ou implodir formidáveis pedras no caminho para chegar ao Palácio  do Catete, onde permaneceria ate 1945 e voltaria a morar como presidente eleito de 1950 a 1954. Entre uma eleição decidida nas urnas e outra resolvida a bala, o conciliador vocacional teve de sobreviver a mais uma guerra civil gaúcha, a duelos com correligionários ciumentos ou adversários brutais, além dos sucessivos levantes promovidos por tenentes rebelados desde a primeira noite no quartel, que começaram com o hino ao absurdo composto pelos 18 do Forte e desembocaram na Coluna Prestes.
Pois ainda melhor que a história é o elenco, que soma os melhores e mais brilhantes atores de duas gerações admiráveis. Uma composta de veteranos como o gaúcho Borges de Medeiros, o mineiro Antônio Carlos de Andrada ou o fluminense Washington Luís, começava a sair de cena depois de fundar a República. Outra, que aposentaria a República precocemente envelhecida, juntava jovens como o sergipano Siqueira Campos, o cearense Juarez Távora ou os gaúchos Oswaldo Aranha, João Neves da Fontoura, Batista Lusardo, Luís Carlos Prestes e Flores da Cunha.
Até que a vitória em 1930 o transformasse em estrela incontrastável, Getulio teve de caçar espaços na ribalta atulhada de protagonistas ou coadjuvantes que encarnavam personagens secundários com a aplicação de candidatos ao papel principal. Getúlio, por exemplo, garantiu a vaga no grupo de elite ao encarnar o mais leal dos ministros de Washington Luís e, em seguida, o mais obediente discípulo de Borges de Medeiros. Washington Luís só acreditou na deserção do aliado quando Getúlio aceitou enfrentar como candidato oposicionista o sucessor escolhido pelo presidente, Júlio Prestes. E o caudilho que governou o Rio Grande do Sul por 25 anos resolveu transformar em herdeiro aquele filho do amigo Manuel Vargas, general dos chimangos de São Borja.
O maior politico do século nasceu quando o subordinado que sabia obedecer começou a mandar. Alojado no Palácio Piratini em 1928, mostrou em poucos meses que, além de provido das qualidades exibidas pelos parceiros, tinha virtudes que faltavam aos eventuais concorrentes. Culto como Washington Luis, sedutor como Oswaldo Aranha, corajoso como Neves da Fontoura, matreiro como Antônio Carlos de Andrada, Getúlio aprendeu a adivinhar a mudança dos ventos e esperar a hora certa. Proibiu-se de cultivar ódios, ressentimentos ou mesmo antipatias ao decidir que, se ninguém e tão amigo que não possa virar inimigo, também não existem inimigos que não possam ser convertidos em amigos.
Lira Neto demonstra que o líder nascido e criado num mundo dividido em metades incompatíveis superou o mais paciente e habilidoso dos negociadores mineiros na arte da conciliação. Quatro anos depois de trocar tiros com os maragatos de Assis Brasil, apareceu no Piratini trocando amabilidades com o chefe do exercito inimigo. A reconciliação inverossímil permitiu que em 1930, pela primeira vez em 100 anos, os disparos dos combatentes gaúchos não reduzissem a população do Rio Grande do Sul. A revolução comandada por um devoto do convívio dos contrários, coerentemente, foi encerrada pela batalha que não houve em Itararé.
Ainda incompleto, o retrato do mito já permite a contemplação de um estadista diplomado com louvor. Num país que confunde teimosia com coerência, Getulio foi sempre contemporâneo do mundo ao redor. Positivista de berço, transformou os cristãos no alvo preferencial do discurso do orador da turma da faculdade de direito. Militante do Partido Republicano, endossou os princípios autoritários de Júlio de Castilhos. Durante a ascensão do fascismo na Itália, flertou com as ideias recitadas por Benito Mussolini. Forjado no Brasil rural, apressaria a gestação do Brasil industrializado. Metamorfose nem sempre é outro nome do oportunismo.
Passados 100 anos, o confronto entre os tempos de Getulio e a era Lula informa que no palco sensivelmente modernizado se movem atores de quinta categoria. A plateia não sofreu mudanças notáveis. Antes como agora, eleitores desinformados não conseguem interessar-se por tramas que vão desenhando o futuro da nação. Os netos dos que viam em Getulio o “pai dos pobres” agora enxergam em Lula o “exterminador da fome” e aplaudem as proezas imaginárias da superexecutiva Dilma Rousseff. O que mudou dramaticamente ─ para pior ─ foi o elenco.
As luminosas singularidades que contracenaram, como aliados ou adversários, contracenaram com o presidente suicida foram substituídos por canastrões sem cura e amadores bisonhos. De longe e afundado na abulia, o povo continua validando decisões aprovadas nas coxias. Pena que Oswaldo Aranha não tenha sobrevivido à virada do século. Ele achava que o Brasil em que viveu era “um deserto de homens e de ideias”. Ao ouvir Lula berrando num palanque que é melhor que Getulio Vargas, descobriria que foi traído pela impaciência. Deveria ter esperado cinquenta anos para emitir o diagnóstico.

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