Livros
Ação que corre no STF contra a necessidade de autorização para que uma obra venha a público ganhou parecer favorável do MPF, um documento que deve ser visto como lição de democracia no momento em que medalhões da MPB -- grupo que reúne um ex-ministro da Cultura e um ex-alvo dos censores militares -- se unem contra a liberdade de expressão e o acesso à informação
Maria Carolina Maia
Roberto Carlos: depois de lutar contra a publicação de dois livros, um dos quais nem o tinha como personagem principal, o cantor ganhou o apoio de gente como Caetano Veloso, o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil e Chico Buarque, alvo dileto dos censores da ditadura (Philippe Lima/Agnews)
Imagine um livro sobre o Primeiro Reinado que não mencionasse o pendor de D. Pedro I para as aventuras extraconjugais, determinantes para a concessão de títulos e a formação de laços políticos no Império, e mesmo para a eleição do local onde foi proclamada a Independência do Brasil -- conta-se que, na data de 7 de setembro de 1822, o então príncipe-regente deixava a casa da principal amante, Domitila de Castro Canto e Melo, a marquesa de Santos, para dizer "Independência ou morte" à beira do riacho Ipiranga, em São Paulo. É um cenário assim o proposto pelo procurador regional da República e professor de Direito Constitucional da UERJ Daniel Sarmento, em artigo reproduzido no parecer do Ministério Público Federal sobre a Ação de Inconstitucionalidade Indireta (ADI) 4815, que pede que sejam declarados inconstitucionais os artigos 20 e 21 do Código Civil, aqueles que condicionam a publicação de biografias ao aval dos personagens retratados ou de seus herdeiros. A ação, da Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel), deu entrada em julho de 2012 ao Supremo Tribunal Federal (STF). Favorável ao pedido da Anel, o parecer do MPF é um documento lúcido sobre a questão, além de uma aula de postura democrática, mostrando como o sistema atual asfixia a liberdade de expressão, ameaça a democracia e prejudica a sociedade, alijada de informações de interesse coletivo.
Conheça os artigos 20 e 21
Ambos foram criados com o Código Civil, em 10 de janeiro de 2002:
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
Anexado em junho à ADI da Anel, que está sob os cuidados da ministra Cármen Lúcia, o documento seguia inédito, porque ainda não havia chegado à imprensa. É revelado em boa hora, já que a Folha de S.Paulo acaba de noticiar que um grupo de medalhões da MPB, reunidos na Associação Procure Saber sob a liderança da empresária Paula Lavigne, quer impor restrições ao que pedem editores, autores e leitores através da ação da Anel e também do projeto de lei 393/2011, de autoria do deputado Newton Lima, em tramitação na Câmara dos Deputados. Choca saber que gente como Caetano Veloso, Gilberto Gil (aliás ex-ministro da Cultura do país) e Chico Buarque, um dos maiores alvos da censura na ditadura, estão unidos contra a liberdade de expressão e o acesso à informação.
"Tal exigência (de prévia autorização), ainda que motivada pelo propósito de proteção de direitos da personalidade, configura restrição legal manifestamente desproporcional aos direitos fundamentais à liberdade de expressão e ao acesso à informação, consagrados pela Constituição da República", diz o texto do MPF, assinado por Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, procuradora-geral da República então em exercício. "O regime legal questionado gera ainda consequências deletérias sobre a esfera pública democrática e a cultura brasileira. (…) Tal sistemática viola não apenas o direito dos autores e editoras das obras proibidas, como também o de toda a sociedade, que se vê privada do acesso à informação relevante e à cultura."
O parecer lembra ainda que a liberdade de expressão só é posta em segundo plano em circunstâncias excepcionais, como quando há racismo no discurso. Não é o caso de uma figura pública que se ofende por ter uma falha, defeito ou história qualquer exposta a um leitor ou espectador – a ADI também prevê que obras audiovisuais prescindam de autorização. O MPF entende que, pelo fato de já ser pública, não faz sentido a personagem cobrar privacidade absoluta sobre a sua vida. "Sem embargo, é possível reconhecer uma prioridade prima facie da liberdade de expressão e do direito à informação sobre os direitos da personalidade, quando se tratar de personalidade pública", diz o texto. Que pontua: "Uma democracia real pressupõe a existência de um espaço público robusto e dinâmico, em que os temas de interesse social possam ser discutidos com liberdade. Em outras palavras, a democracia exige ampla proteção da liberdade de expressão."
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