Aproveito o centenário de Nelson Rodrigues, que se comemora amanhã, para reconhecer publicamente uma dívida pessoal e dar uma dica: talvez não haja lição mais importante que os escritores brasileiros do século 21 possam tirar da obra de um dos maiores escritores brasileiros do século 20 do que o difícil aprendizado do diálogo.
Falo de uma questão de forma. Isso não significa minimizar o famoso conteúdo rodriguiano, esse impressionante universo de tipos caricaturais da baixa classe média carioca às voltas com tramas folhetinescas de amor e morte, infidelidade e incesto, numa atmosfera farsesca em que pulsões primitivas estão sempre prontas a furar o verniz da civilização e vir à tona com uma ferocidade equilibrada entre o trágico e o cômico. Evidentemente, é o alcance cultural desse universo que torna Nelson um monstro, um daqueles raros autores sem os quais o país não seria o que é. Mas disso não falta quem esteja falando.
Quando me refiro ao diálogo, falo de uma técnica que permite a dois ou mais personagens trocarem blocos de discurso direto no meio de uma narrativa sem que soem como bonecos de ventríloquo do autor ou como oradores na tribuna da Câmara dos Deputados. Alguns escritores se saem bem da tarefa, a maioria não – e pode até ser que estes, sendo bons em outros fundamentos, contem com nossa complacência de leitores dispostos a fazer vista grossa para o diálogo manco. (Cada vez me convenço mais de que a boa ou má vontade prévia do leitor é meio caminho andado – ou desandado.)
A complacência eventual não muda o fato de que o fundamento do diálogo pode ser dominado ou não. Minha formação de escritor se deu num tempo em que ainda se atribuía grande valor a isso. Ultimamente, o assunto anda meio esquecido, o que suponho ter a ver com a queda em desgraça da “prosa realista” nas universidades (como se o diálogo, que tem nela um papel fundamental, fosse irrelevante para outros registros). Poucos anos antes de morrer, em momento pouco feliz, o escritor gaúcho Moacyr Scliar chegou a declarar que folheava livros para medir no olhômetro a quantidade de diálogos: “Se forem muitos, não acredito que sejam bons livros”.
Durante muito tempo escrevi, sem publicar, diálogos que, mal tocavam a página, passavam a me repugnar intensamente. Eram mais falsos que propaganda eleitoral, às vezes coloquiais demais (“Tu tá de brincadeira, mermão?”), às vezes coloquiais de menos (“Lamento informar, contudo, que pegarei o trem das onze com a firme intenção de nunca mais regressar”), quase sempre de uma dolorosa irrelevância (“Bom dia!” “Bom dia, como vai?” “Eu vou bem, e a senhora?” “Ah, vai-se indo”.)
Trata-se de uma técnica complexa, claro, que jamais poderá ser reduzida a dois ou três truques. Mas foi com Nelson Rodrigues que, em 1992, aprendi que dois ou três truques podiam, sim, ser a base de todo o resto – se não suficientes, fundamentais. Como as melhores lições, esta veio sem que eu a estivesse procurando. Foi como preparação para entrevistar Ruy Castro sobre sua magnífica biografia de Nelson, “O anjo pornográfico”, que, além de ler o livro em questão, mergulhei na leitura (em uns poucos casos, releitura) intensiva de todo o teatro rodriguiano, naquele volume único da Nova Aguilar.
Passei dois dias inteiros ali dentro, respirando aquilo. Quando saí, minha capacidade de escrever diálogos tinha melhorado mil por cento. (Alguns dirão que isso não foi suficiente, e dependendo do dia eu posso até concordar, mas uma melhora de mil por cento será sempre significativa, qualquer que seja o valor absoluto.)
Pensando agora naquele salto de qualidade, no que aprendi com Nelson sobre o diálogo, chego a três linhas de força que talvez resumam uma aula magna que nada teve de organizada, que dirá organizada em tópicos:
1. O coloquial na literatura é uma estilização – Não adianta ligar um gravador no trem lotado para captar a “verdadeira fala das ruas”. Na literatura, cada palavra tem um peso maior, um valor mais concentrado. Em Nelson, o português é profundamente brasileiro, mas formalmente limpo. Expressões coloquiais e até gírias (não muitas) surgem transfiguradas em fórmulas de limpidez epigramática: “O que estraga o adultério é a clandestinidade. Não, senhor, não admito. Vamos oficializar o troço”, diz o Dr. Lambreta de “Viúva, porém honesta”.
2. Pingue-pongue é melhor que xadrez – Um dos maiores inimigos da verossimilhança de um diálogo é a tendência ao discurso: o personagem tem um pensamento a expressar e o expressa do início ao fim, sem interrupção. Em seguida, outro personagem reflete sobre aquilo e emite seu parecer. O efeito é frequentemente solene e, a menos que seja essa a intenção, falso. Diálogos costumam ter velocidade mais próxima do pingue-pongue que do xadrez. A agilidade da intercalação de blocos curtos tem a vantagem adicional de realçar dramaticamente as falas mais longas nos momentos em que elas forem cabíveis. O exemplo é tirado de uma conversa de Elias e Virgínia em “Anjo negro”: “A senhora é bonita?” “Me chame de você.” “É?” “Você acha que sou?” “Me disseram que sim.” “Pois sou.”
3. Atenção aos “arrancos de cachorro atropelado” – A ordenação sintática muito certinha pode ser outra inimiga. Ao conversar, os personagens estão improvisando, formulando pensamentos que lhes ocorrem naquele instante – e que muitas vezes são incompletos, contraditórios, redundantes, quando não profundos ou perigosos demais para se deixarem expressar. Da mesma forma, ninguém é obrigado a responder claramente à interrogação do outro, as perguntas podem se acumular, o assunto ser desviado. Um efeito de tumulto controlado faz maravilhas pelo fio de um diálogo. Como o de Arandir e Selminha em “O beijo no asfalto”: “Escuta. Vi o rapaz morrer, sim. Da minha idade, mais ou menos. Selminha, ele estava em cima do meio-fio. Esperando que o sinal abrisse. Em cima do meio-fio. De repente, não sei como foi: ele perdeu o equilíbrio. Caiu para a frente e… Vinha um lotação a toda velocidade. Bateu no rapaz, atirou numa distância como daqui ali.” “Gritou?” “O rapaz?” “Meu bem…” “O atropelado não grita. Ou grita? Esse não gritou.” “Era bonito?” “O lotação passou por cima.”
Um pouco de tudo isso pode ser visto nos vertiginosos diálogos telefônicos cruzados de “Vestido de noiva”:
PIMENTA – É o Diário?
REDATOR – É.
PIMENTA – Aqui é o Pimenta.
CARIOCA-REPÓRTER – É A Noite?
PIMENTA – Um automóvel acaba de pegar uma mulher.
REDATOR D’A NOITE – O que é que há?
PIMENTA – Aqui na Glória, perto do relógio.
CARIOCA-REPÓRTER – Uma senhora foi atropelada.
REDATOR DO DIÁRIO – Na Glória, perto do relógio?
REDATOR D’A NOITE – Onde?
CARIOCA-REPÓRTER – Na Glória.
PIMENTA – A Assistência já levou.
CARIOCA-REPÓRTER – Mais ou menos no relógio. Atravessou na frente do bonde.
REDATOR D’A NOITE – Relógio.
PIMENTA – O chofer fugiu.
REDATOR DO DIÁRIO – OK.
CARIOCA-REPÓRTER – O chofer meteu o pé.
PIMENTA – Bonita, bem vestida.
REDATOR D’A NOITE – Morreu?
CARIOCA-REPÓRTER – Ainda não. Mas vai.
Sérgio Rodrigues
Todoprosa
http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/vida-literaria/nelson-cem-anos-de-um-mestre-do-dialogo-brasileiro/
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