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Em outubro do ano passado, durante rápido período de férias na Califórnia, resolvemos, eu e minha companheira de viagem e de vida, conhecer Carmel, cidadezinha do litoral ao sul de São Francisco, famosa por conta de sua arquitetura peculiar, seus frequentadores milionários e do "rancho" do ator e ultimamente grande diretor Clint Eastwood, moradia de verão do artista transformada num charmoso hotel --também para abonados, claro.
De fato, Carmel, sobretudo o centro da cidadezinha, é um encanto, com suas ruas tranquilas, antiquários, galerias, construções multicoloridas de teto baixo, floreiras abundantes, gente hospitaleira. Além de algumas Ferraris percorrendo calmamente as ruas estreitas e as muitas lojas de grife ali instaladas para atender à demanda dos que têm o que gastar e gastam o que tem.
Num passeio de fim de tarde por uma calçada de muitas lojas, chamou nossa atenção a atividade de umas moças que reformulavam a vitrine de uma butique de roupas femininas. Quando passamos em frente à vitrine descendo a rua, elas retiravam as roupas das manequins de gesso, certamente para exibir produtos da nova estação que adentrava. Algum tempo depois, quanto subíamos a mesma via com a noite fechada, as moças tinham ido embora, provavelmente deixando para o dia seguinte o fim da tarefa.
Antes disso, porém, tinham "vestido" cada um dos manequins com papel de seda, escondendo assim as "partes pudendas" daquelas mulheres de gesso e tinta. O papel cor-de-rosa estava enrolado gentilmente em torno das bonecas, preso na cintura, de maneira a cobrir seus seios artificiais e sua genitália inexistente.
Arquivo pessoal | ||
Manequim em loja de Carmel com suas 'vergonhas" escondidas |
Sim, comentou minha namorada entre risos, é preciso proteger as velhinhas ricas de Carmel de cenas tão chocantes, afinal elas são americanas e exageradamente moralistas...
Claro que esta não foi a primeira nem será a última manifestação de pudicícia explícita do americano médio --sim, porque, como sabemos, os fora da média são capazes de loucuras sensacionais, e aí estão seu cinema, sua literatura e suas outras artes para demonstrar isso.
Mas o episódio veio à lembrança por conta da censura aplicada há pouco pelos administradores da rede social Facebook ao fotógrafo carioca Fernando Rabelo: ele teve sua página de perfil retirada do ar por alguns dias como punição ao fato de ter publicado uma foto da escritora francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) nua de costas.
Art Shay/Divulgação | ||
Simone de Beauvoir na foto de Art Shay |
Para quem não sabe, esta foto, de 1952, é famosíssima, foi realizada pelo fotógrafo norte-americano (!) Art Shay, em Chicago, durante uma estadia da libertária escritora na cidade. Uma foto roubada, mas posteriormente autorizada, enquanto a escritora estava ao toucador.
Ao que tudo indica, o surto de defesa da moral e dos bons costumes, que grassou aqui pelo Brasil nos tempos da ditadura, teve um espera-se que fortuito retorno pelas mãos dos gestores do Face, aparentemente um território livre para ideias e estéticas, cujos parâmetros deveriam ser apenas o respeito ao próximo, o bom senso e os limites da lei.
Que obviamente não foram transgredidos pelo belo derrière da companheira de Jean Paul Sartre (1905-1980), uma pioneira dentre as mulheres libertárias, defensora tenaz seu gênero como plenamente capaz de dispor de sua vida, de suas ideias e certamente de seu corpo, como deixou claro nesta frase:
"Nenhuma educação pode impedir a menina de tomar consciência de seu corpo e de sonhar com seu destino; quando muito pode impor-lhe estritos recalques que pesarão mais tarde sobre toda a sua vida sexual".
Luiz Caversan é jornalista e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos "Cotidiano", "Ilustrada" e "Dinheiro", entre outras funções. Escreve aos sábados no site da Folha.
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