É provável que investigação da PM traga à tona erros cometidos na operação montada para conter protestos em São Paulo.
Mas exageros e erros não devem colocar em xeque o direito e o dever policial de zelar pela ordem
Do site de VEJA
Na manhã desta sexta-feira, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella Vieira, autorizou o início de uma investigação para averiguar se houve excessos da Polícia Militar durante a última passeata do Movimento Passe Livre na capital do Estado.
É provável que a investigação da Corregedoria da PM traga à tona erros cometidos na operação para conter e dispersar os manifestantes. Na internet espalham-se imagens de pessoas que alegam ter sido agredidas de maneira arbitrária.
Notoriamente, há déficits no treinamento dos policiais brasileiros. Uma análise perfunctória dos confrontos de quinta-feira mostra que não foram seguidas à risca diversas recomendações do Código de Conduta para Agentes de Segurança Pública das Nações Unidas, uma espécie de código internacional para ações policiais durante manifestações públicas.
Isso não significa, no entanto, que tenha sido ilegítima a ação da PM na marcha de São Paulo. É uma questão de princípios. “No Estado de Direito, a Polícia tem autorização para usar a força a fim de garantir a ordem e a segurança”, diz Maria Stela Grossi Porto, socióloga e membro do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília. “Mais ainda, o uso da força é monopólio dela.”
A tentativa de fazer da ação da PM um exemplo de autoritarismo comparável à repressão dos tempos de regime militar no Brasil, ou à ação das polícias de regimes ditatoriais, é um evidente absurdo, uma vez que o país não vive um regime de exceção.
Mais razoáveis seriam comparações com embates ocorridos nos Estados Unidos e na Europa – ou seja, em nações democráticas – em anos recentes. Londres, Madri, Nova York, Toronto são apenas algumas das metrópoles que foram palco de choques entre a polícia e ativistas inspirados por ideais não muito diferentes daqueles abraçados por quem protesta em São Paulo – a rejeição ao “sistema”, em algum de seus aspectos particulares ou de maneira genérica.
Em novembro de 2011, por exemplo, durante a desmonte dos acampamentos de manifestantes do Ocupe Wall Street, em Nova York, ao menos 300 pessoas foram presas.
Houve uma larga discussão sobre “uso abusivo da força” e dois oficiais se tornaram emblemas desse hipotético excesso, pelo uso indiscriminado de spray de pimenta. Eles foram submetidos a sindicâncias e punições, mas nenhum deles sofrera uma ação criminal, como foi decidido em meados de abril deste ano.
Em reportagem sobre o caso, o jornal The New York Times ouviu um especialista em Direito Penal que ressaltou a dificuldade em se processar policiais envolvidos em situações “caóticas” como a de uma manifestação de rua.
“Seria preciso provar, para além de qualquer dúvida razoável, que o polícial usou a força em total desacordo com as suas atribuições”, disse o ex-promotor Thomas J. Curran. “Ocorre que o uso da força é parte das suas atribuições.” Quando posta em movimento, nenhuma polícia é angelical.
Uso da força — “É muito tênue o limite do que é legítimo e do que não é em situações de multidão”, diz Maria Stela Grossi Porto. “Os casos precisam ser sempre analisados individualmente.”
Os possíveis exageros e erros da quinta-feira não devem, portanto, colocar em xeque o direito e o dever policial de zelar pela ordem durante uma passeata.
A sua presença é a única maneira de garantir a segurança dos transeuntes, do patrimônio público e, em certas circunstâncias, até mesmo dos manifestantes — uma vez que as marchas costumam reunir um público heterogêneo, como sem dúvida foi o caso nos últimos dias em São Paulo.
Isso não está em contradição com a necessidade – também ela permanente – de aprimorar e “civilizar” as forças policiais.
Num ato de rua, ditam os protocolos, a polícia deve seguir três passos: esclarecimento, contenção e repressão.
Num primeiro momento, há que se coletar informações sobre o movimento e negociar locais e itinerários com os manifestantes. Isso foi feito na quinta-feira em São Paulo, e um dos motivos da situação ter fugido ao controle foi a tentativa de alguns líderes da passeata de mudar o trajeto combinado e furar ou contornar o bloqueio policial.
A fase de contenção é preparada para quando a manifestação pode evoluir a um tumulto. Nessa situação, a tropa de choque se posiciona de maneira ostensiva para tentar dissuadir os manifestantes. Entre esse momento e os primeiros atos de repressão, uma série de medidas dissuasórias deve ser empregada.
Segundo José Inácio Cano, do Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), reclamações sobre o uso abusivo da força policial durante manifestações são comuns no mundo todo.
“É importante que fique claro apenas uma questão: a primeira abordagem policial tem de ser sempre pacífica, a tentativa de ganhar os manifestantes pela conversa, pela negociação.” Um histórico de manifestações anteriores não deve justificar ações açodadas. “A polícia não pode dar início a uma ação repressiva com base em algo anterior. Assim como tem o direito de usar a força, o policial é profissional e deve ser treinado para não agir no impulso.”
(des)preparo — “O policial precisa ser melhor treinado, precisa de educação continuada e de socialização. Infelizmente, isso ainda não atinge aquele policial que está na linha de frente”, diz Maria Stela.
Uma medida relativamente simples de aprimoramento, testada em outros países e ainda de maneira incipiente no Brasil, é a criação de relatórios diários. Em linhas gerais, isso significa que o policial, após um dia de trabalho, deve relatar por escrito o que aconteceu e como atuou em cada ocorrência. “Esse é um caminho eficiente, usado em países estrangeiros, para que o policial reflita sobre seus atos e tenha um retorno sobre se agiu, ou não, corretamente.”
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