quinta-feira 18 2012

E o feio se tornou bonito...


Cultura
O Maior Amor do Mundo, de Cacá Diegues,
ilustra como o esquerdismo bocó dos anos
60 deu no populismo de exaltação

Reinaldo Azevedo
 
Fotos divulgação
O diretor Cacá Diegues, num cenário de O Maior Amor...,estrelado por José Wilker (abaixo): o individualismo é ainda mais pecaminoso do que o lucro

DA INTERNET
Trailer do filme
O filme O Maior Amor do Mundo,de Cacá Diegues, que estreou no Dia da Independência, prova que, "nestepaiz", só o individualismo é mais pecaminoso do que o lucro. A idéia de que o indivíduo é responsável por seus atos ofende os órfãos pidões, tutelados pelo Estado. No filme, o astrofísico Antonio (José Wilker), de volta ao Brasil depois de fazer carreira nos Estados Unidos, visita o pai adotivo num asilo e obtém pistas de sua mãe verdadeira. O útero é metáfora da pátria. Ele está com câncer e quer unir as duas pontas da vida. Na busca, o racionalista e um tanto apatetado Antonio se apaixona pela suburbana sensual Luciana (Taís Araújo). O clichê celebra sua vitória.
Ele, nascido no dia da derrota do Brasil para o Uruguai, em 1950 – um mau presságio –, encontra vitalidade na pobreza edênica, tornada cultura de resistência. Se tudo começa com a mãe, Diegues manda Freud para o divã do populismo. A música concilia a razão branca, culpada e de olhos verdes de Chico Buarque, a contestação integrada do AfroReggae e pitadas do oficialismo de Gilberto Gil. A câmera lambe as paisagens das "vastas solidões", como diria o abolicionista Joaquim Nabuco, mas também as carências da periferia – aquela que Regina Casé, no Fantástico, diz ser "o centro".
Não se denunciam mazelas, a exemplo do que fazia o antigo Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes. Elas são antes uma verdade afirmativa. O CPC cantava "feio não é bonito", "o morro existe, mas pede para se acabar". Hoje, o morro reivindica identidade. Uma certa Central Única das Favelas (Cufa) fornece mão-de-obra e metafísica a Diegues. Queremos ser conscientizados pelo oprimido. No livroGenealogia da Moral, o filósofo alemão Nietzsche vê no servo que reivindica o direito de falar como servo o fim da civilização.
O filme não acredita em indivíduos órfãos de tutela. Quer uma pátria gregária, como a Cufa. Nos moldes da CUT, ela tem de filiar "sindicatos" e produzir valores. Antonio se reeduca. A astrofísica que se dane com Plutão. Há uma atmosfera de nostalgia do útero nativista, caboclo, nacional-desenvolvimentista, embora aí, de fato, esteja nossa tragédia: o Estado patrão, que faz até cinema por meio das estatais; o compadrio; as formas renitentes de patrimonialismo... Só faltava o assalto ao Estado como ideologia não contabilizada. Já temos. Cineastas sempre têm uma câmera na mão e um Brasil na cabeça. É de orfandade que tratava o filme Central do Brasil, de Walter Salles Jr., lembram-se? O garoto cortava o sertão, deixando para trás a cidade, fonte de todo mal, para encontrar o pai. Corolário: precisamos de alguém que cuide de nós.
Enquanto a elite branca de Cláudio Lembo se emperiquitava no sábado 2 para assistir ao show de Chico (Carioca), uma parte dos moradores de Cidade de Deus, no Rio, ia ao comício de Lula, convidado pela... Cufa! O PT laçou jovens, etnias de exceção e crianças assistidas por programas federais para dar testemunho em favor do pai-presidente. À moda das igrejas neopentecostais – como respeitar religiões mais jovens do que um bom uísque? –, os filhos de Lula foram lá narrar a sua vida antes e depois da adoção. O presidente violava o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Eleitoral. E daí?
Ninguém quer ensinar Mozart ou Kant aos pobres. Eles têm de aprender batuque, funk e rap. É batata: há uma relação inversamente proporcional entre a variedade de instrumentos de percussão e saneamento básico. Onde excedem o "baticumbum" e os versos de pé quebrado, falta água encanada. E sobejam verminoses. Do esquerdismo bocó da década de 60 para o populismo de exaltação de hoje, o feio se tornou bonito. Só não abrimos mão da orfandade pidonha – que é a morte do indivíduo.

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