Em março de 2020, enquanto o mundo se adaptava à pandemia de covid-19, David Hockney divulgou uma imagem de narcisos amarelos vibrantes intitulada "Lembre-se que a primavera não pode ser cancelada".
Em meio a tanto medo e incerteza, ele ofereceu uma explosão de otimismo necessária, lembrando a todos nós que a natureza, com seus ciclos contínuos de renascimento e renovação, ainda pode nos trazer esperança.
Hockney aprecia há muito tempo o mundo natural, tanto por sua inspiração estética quanto por suas qualidades terapêuticas: "Só podemos nos renovr olhando para a natureza", disse ele.
É um ponto de vista que muitos de nós passamos a compartilhar ao longo do ano passado, quando fizemos longas caminhadas para acalmar nossas mentes aceleradas.
Os resultados podem ser tangíveis; foi comprovado que passar apenas 20 minutos em um ambiente natural é capaz de reduzir os níveis de estresse.
Até mesmo olhar para imagens da natureza pode induzir alguns dos mesmos efeitos. Então talvez não seja nenhuma surpresa que as pessoas tenham se aglomerado para visitar a exposição Hockney - Van Gogh: The Joy of Nature, no Museu de Belas Artes de Houston, nos EUA, enquanto os londrinos comparecem agora à mostra Hockney's The Arrival of Spring, em cartaz na Royal Academy.
"As pessoas estão realmente amando a mostra. Passamos maus bocados aqui com a covid e depois com o gelo, que fez tudo parar, e os rostos das pessoas simplesmente se iluminam quando entram nas galerias", diz Ann Dumas, curadora da exposição de Houston, que conversou com a BBC Culture no início de março, justamente quando o Texas estava começando a se recuperar de uma onda de frio incomum.
A exposição, uma reformulação da exposição extremamente popular de 2019 no Museu Van Gogh em Amsterdã, explora o amor dos dois artistas pela natureza, assim como a influência inconfundível de Van Gogh sobre Hockney.
O fascínio pela natureza para ambos os artistas foi provocado por uma mudança de cenário.
Quando Van Gogh se mudou para o sul da França, ele fez inovações nas cores que levaram a naturezas mortas cheias de vida e paisagens ensolaradas que levantam o ânimo de todos que as veem, enquanto a volta de Hockney para Yorkshire, após muitos anos em Los Angeles, fez com que ele redescobrisse as paisagens locais que retratou com sua paleta vibrante e única.
"Sempre achei o mundo muito bonito ao olhar para ele. Só de olhar. E isso é uma coisa importante que compartilho com Vincent van Gogh: nós dois realmente gostamos de olhar para o mundo", declarou Hockney.
Talvez sem surpresa, o tema deles frequentemente se sobreponha.
"Temos uma bela pintura de Van Gogh de alguns troncos de árvore, apenas a parte inferior de dois troncos de árvore na floresta na primavera, e é como se ele praticamente estivesse deitado no chão da floresta e na frente dele há um grande tapete de flores silvestres", diz Dumas.
Hockney explorou o mesmo tema em seu monumental A Chegada da Primavera em Woldgate, East Yorkshire, de 2011, em que "tudo é realmente ampliado, todas as flores silvestres estão realmente desabrochando", acrescenta a curadora.
A pintura, com seus verdes exuberantes e galhos pontilhados de folhas que parecem se contorcer de alegria, é sem dúvida um dos destaques da mostra. Assim como em outra obra, que Hockney filmou no mesmo local — The Four Seasons, Woldgate Woods (primavera de 2011, verão de 2010, outono de 2010, inverno de 2010).
Formada por quatro painéis, sendo cada um deles composto por nove telas que se movem sutilmente, a obra mostra a mesma área de floresta à medida que muda ao longo das estações.
"As pessoas ficam fascinadas", diz Dumas, "é realmente envolvente".
A visão reconfortante do inverno se transformando em primavera é claramente exatamente o que os texanos estavam precisando.
"As pessoas nos escreveram dizendo: 'Obrigado por nos trazer essa exposição'", conta Dumas.
"Elas veem isso muito como uma questão de esperança."
Uma dose de dopamina
Esperança é certamente o que Edith Devaney, curadora da mostra da Royal Academy, precisava em 2020, quando foi forçada a suspender o programa de exposições da instituição não apenas uma, mas três vezes, enquanto o país entrava em repetidos lockdowns.
Hockney estava na Normandia, na França, na época — ele sempre teve a intenção de capturar a chegada da primavera lá —, e começou a enviar obras concluídas para um grupo seleto, do qual Devaney se considera sortuda por fazer parte.
"Devo dizer que ser destinatária dessas imagens dava um alento", afirma.
"São visualmente encantadoras e mudam seu humor, isso é uma coisa bastante interessante, até que ponto realmente melhoram o humor."
Ela não tem dúvidas sobre o impacto que a série concluída terá sobre um público mais amplo.
"É uma daquelas raras ocasiões em que uma exposição de arte terá ressonância com absolutamente todos os seres humanos vivos. Significará algo para todos nós por causa do que passamos globalmente", avalia.
"É aquela ideia do ciclo da vida, você tem que se agarrar a ela... é um lembrete de que existe uma força maior do que nós."
Assim como Dumas, Devaney comenta a observação perspicaz de Hockney.
Em conversa com ela no catálogo da mostra, o artista fala com entusiasmo sobre a variedade de verdes necessários para capturar a mudança de estação.
Dá para sentir o fascínio dele enquanto fala sobre como procura os primeiros brotos ou espera para ver se o pé de pêra ou a cerejeira vai florescer primeiro.
Essa empolgação e alegria genuína são aparentes em cada uma das "pinturas de iPad", método que ele criou ao longo da última década, sobretudo agora que tem seu próprio aplicativo especial desenvolvido por um matemático no norte da Inglaterra .
Isso permite a ele, entre muitas outras inovações, incluir as camadas que deseja.
As pinturas transmitem um entusiasmo que não tem como não ser contagiante, e Devaney acredita que a mostra dará aos visitantes que ainda não se reconectaram com a natureza um desejo renovado de compreender o mundo natural ao seu redor.
"Uma das coisas que a obra de David nos ensina a fazer é olhar — é esse tipo de observação que perdemos, temos tantos estímulos visuais diferentes agora, e ainda mais porque todos nós ficamos grudados em nossas telas por um ano, que isso é um lembrete de que, na verdade, esse olhar não é adequado; o olhar adequado é o que você tem quando está na natureza. "
O benefício de realmente olhar, tanto em termos de inspiração criativa quanto para melhorar o humor, é algo que a naturalista, designer-maker e ilustradora Emma Mitchell entende bem.
Mitchell sofre de depressão há muitos anos e, em seu livro The Wild Remedy, ela escreve lindamente sobre como mergulhar na natureza e criar arte e artesanato a partir de suas descobertas ajudou sua saúde mental.
"Como tenho formação de cientista, sou fascinada com o que [a natureza faz] com nossas mentes e cérebros... até mesmo apenas 10 minutos de criatividade diária e uma caminhada diária entre árvores e plantas podem fazer uma enorme diferença para nossa saúde mental", diz ela à BBC Culture.
"Se você simplesmente olhar para as imagens da natureza, que podem estar em movimento ou estáticas, você obtém uma resposta de relaxamento, se você de fato sair para caminhar por 15-20 minutos, os níveis do hormônio do estresse cortisol caem significativamente... nossos cérebros são programados para responder a árvores, plantas, à visão de folhas e até mesmo apenas à cor verde", diz Mitchell.
Os padrões que ocorrem naturalmente na natureza também podem melhorar nosso humor.
"Quando vemos fractais, por exemplo, o padrão de galhos e ramos é um fractal botânico, obtém-se uma resposta no cérebro semelhante a quando ouvimos música, que pode desencadear euforia e dopamina", explica.
Em suas caminhadas, Mitchell frequentemente coleta objetos naturais, que ela então organiza em fotografias adoráveis e sublimes, inspiradas em livros de referência botânica do século 19.
Criar as imagens oferece a Mitchell uma dose de dopamina, mas ela também usa sua pesquisa na área acadêmica para garantir que suas criações possam oferecer benefícios à saúde mental de seus seguidores quando ela publica no Twitter e no Instagram.
"As pessoas realmente respondem positivamente às gradações suaves de cores, seja das flores, troncos ou, às vezes, das folhas no outono. Isso combina os benefícios de ver uma espécie de planta individual com os efeitos comprovados dos fractais", diz ela.
A reação do público no Texas sugere fortemente que as imagens da natureza não precisam ser cientificamente precisas para desencadear as mesmas respostas.
"Se muitas pessoas estão respondendo positivamente a essa exposição, e talvez a certos elementos dela, isso poderia ser analisado e estudado", diz Mitchell.
"Quando simplesmente olhamos para o que pode ser considerado uma representação bastante extravagante da natureza em um iPad, é bastante arrebatador e, às vezes, as cores são inesperadas, mas ainda assim toca as pessoas tão fortemente que a química do nosso cérebro pode ser alterada," acrescenta.
A exposição da Royal Academy parece destinada a oferecer a mesma dose de dopamina, mas Mitchell diz que todos nós podemos nos beneficiar da natureza e da criatividade se seguirmos o exemplo de Hockney, Van Gogh e do seu próprio livro e nos embrenhar entre as plantas para realmente olhar.
"Veja se você consegue encontrar algo que você acha bonito, talvez leve uma ou duas folhas para casa, uma pena ou uma pequena violeta e, em seguida, guarde de alguma forma prensando-a ou tirando uma fotografia. Isso vai te dar uma leve levantada, e se você fizer isso no dia seguinte, é cumulativo. Se você continuar fazendo isso, pode fazer uma diferença significativa para sua saúde mental."
A exposição 'Hockney - Van Gogh: The Joy of Nature' no Museu de Belas Artes de Houston, ficou em cartaz até 20 de junho de 2021; e a mostra 'David Hockney: The Arrival of Spring, Normandy 2020' ficará em exposição na Royal Academy of Arts de Londres até 26 de setembro de 2021.
Como imagens da natureza podem nos dar alegria - BBC News Brasil
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