Listas de conselhos de escritores são um gênero jornalístico de qualidade duvidosa, apesar de sempre atraírem leitores aos magotes – o número de aprendizes das letras que há no mundo, muitos deles inseguros dos caminhos que começam a trilhar, garante seu sucesso. A morte do americano Elmore Leonard, na última terça-feira, aos 87 anos, rendeu grande exposição ao seguinte decálogo elaborado para o “New York Times” em 2001 pelo maior mestre dos romances policiais (e de faroeste, gênero no qual começou a carreira) da segunda metade do século XX:
Nunca inicie um livro falando do tempo.Evite prólogos.Nunca use um verbo que não seja “disse” para os diálogos.Nunca use um advérbio para modificar o verbo “disse”.Mantenha seus pontos de exclamação sob controle.Nunca use as palavras “subitamente” ou “começou uma confusão dos diabos”.Use com parcimônia dialetos regionais e gírias.Evite descrições detalhadas dos personagens.Não entre em detalhes demais ao descrever lugares e coisas.Tente deixar de fora as partes que os leitores pulam.
No fim, um décimo primeiro conselho aparece como o resumo de tudo:
Se parece que foi escrito, eu reescrevo.
A lista de Leonard – escritor que muito admiro e no qual fui viciado por anos a fio, na última década do século passado – é de uma simplicidade desconcertante. De saída chama a atenção pela escassez de iluminações próprias, parecendo mais um compêndio de diretrizes daquela prosa realista americana que Ernest Hemingway e Dashiell Hammett, cada um em seu campo, contribuíram mais do que ninguém para consolidar nos anos 1930. Outros escritores disseram coisas parecidas, até com mais verve, como F. Scott Fitzgerald ao afirmar que usar um ponto de exclamação “é como rir da própria piada”.
Além disso, o que é mais perturbador, uma lista de conselhos negativos (“evite”, “nunca use”, “deixe de fora”) praticamente exige que a encaremos como conservadora, uma receita para a reprodução de efeitos literários já conhecidos e testados – o que, levado ao pé da letra por um escritor iniciante, pode ter consequências nefastas ao lhe fechar a janela para o novo, o que jamais foi experimentado exatamente daquela forma. Algo que talvez não passe de utopia, mas sempre estará no horizonte da literatura enquanto literatura houver. Se existe uma verdade absoluta nesse campo de relativismos em profusão, é esta: recursos gastos existem para que escritores de talento os reabilitem, como provou Machado de Assis ao revisitar o datadíssimo Laurence Sterne.
Como qualquer lista de mandamentos literários, é preciso saber ler o decálogo de Elmore Leonard para tirar proveito dele. O gênero dos conselhos tem seu limite óbvio no fato de oferecer dicas para quem, no universo virtualmente infinito de possibilidades da literatura, quiser escrever livros parecidos com os do autor em questão. Até nisso, porém, é insuficiente. O que faz a grandeza de Leonard não está ali, nem poderia estar. Trata-se de um conjunto de instruções para afinar o instrumento. Quanto à música que será tocada nele, cada um precisa encontrá-la sozinho.
Não aparece nesses conselhos (e como ensinar uma coisa dessas?) o ouvido perfeito de Leonard, a mais bem acabada estilização do inglês americano contemporâneo já vista nas letras. Nem seu talento para desenhar o perfil psicológico dos personagens em diálogos rápidos, ironicamente informados pela cultura pop – sim, não foi em outro lugar que Quentin Tarantino aprendeu. Tampouco aparece o infalível senso de ritmo de suas histórias narradas numa terceira pessoa que nada tem de onisciente, colada ao ponto de vista de um protagonista (des)equilibrado entre o herói e o anti-herói – um sujeito meio ferrado que caminha na linha de sombra entre a legalidade e a ilegalidade, em muitos casos um ex-presidiário, o que torna seus livros, apesar de assumidamente comerciais e produzidos em série, deliciosas e sempre imprevisíveis subversões do maniqueísmo que assola a literatura de gênero.
No fim das contas, saber ler o decálogo de Leonard – e qualquer outro rol de conselhos literários – significa tomá-lo menos como receita de bolo do que como um mapa de pontos de tensão, de encruzilhadas estéticas que qualquer aprendiz das letras encontrará em seu caminho se cultivar algum espírito reflexivo sobre o ofício. Não há decisões certas e erradas nessas bifurcações: tudo depende de aonde cada um conseguirá chegar na estrada que escolher. Tomar consciência dos pontos de tensão é perder a ingenuidade.
A prosa de Leonard – realista, acelerada, movida pela ação, na qual um escritor declaradamente “invisível” não tem tempo a perder com o subjetivismo e os meandros da linguagem poética – denuncia, no alto nível artístico que consegue atingir, a crise estética de tudo o que seja o seu contrário: confesso que a exposição concentrada a seus livros fez encolher muito minha tolerância aos excessos molengos do subjetivismo e da linguagem poética. Ao mesmo tempo, a prosa leonardiana é denunciada em suas limitações o tempo todo, a cada vez que uma de suas regras de ouro é quebrada com sucesso: no prólogo interminável de “O nome da rosa”, de Umberto Eco, por exemplo; ou nas detalhadas descrições de personagens que Daniel Galera torna engenhosamente indispensáveis em “Barba ensopada de sangue”.
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