No fascinante romance-ensaio “O papagaio de Flaubert”, lançado em 1984, o francófilo escritor inglês Julian Barnes dedica um capítulo aos olhos de Emma Bovary. Nele faz, em miniatura, uma grande e já célebre crítica à crítica acadêmica na pessoa de Enid Starkie, renomada biógrafa de Gustave Flaubert e professora de Oxford. “Flaubert não constrói seus personagens, como fazia Balzac, por meio da descrição objetiva de traços exteriores”, afirma Starkie, que já tinha morrido quando Barnes escreveu seu livro, lembrada pelo narrador Geoffrey Braithwaite. “Na verdade, ele é tão descuidado com a aparência deles que a certa altura atribui a Emma olhos castanhos; em outra, olhos profundamente negros; e numa terceira, olhos azuis.”
Alter ego do autor, Braithwaite fica muito incomodado com isso. Como é possível que, obcecado pelo romance de Flaubert, nunca tivesse reparado em tão grosseira inconsistência? Voltando ao texto, sua irritação muda de endereço. No fim das contas fica evidente que o escritor francês queria que os olhos de Bovary fossem cambiantes: naturalmente castanhos, pareciam negros sob a sombra dos cílios e podiam adquirir um surpreendente tom de azul escuro quando a luz incidia neles de certa forma. Conclui Braithwaite/Barnes: “Seria interessante comparar o tempo gasto por Flaubert para se assegurar de que sua heroína tivesse os olhos raros e difíceis de uma adúltera trágica com o tempo gasto pela dra. Starkie para subestimá-lo”.
Vou buscar na memória a metamorfose ambulante da íris de Madame Bovary ao ler as curiosas reflexões (sob o título Olhares e faróis) que o crítico literário carioca João Cezar de Castro Rocha dedica ao papel narrativo desempenhado pelos olhos dos personagens em seu recém-lançado “Machado de Assis: por uma poética da emulação” (Civilização Brasileira, 368 páginas, R$ 40). Não se trata do argumento central do livro, dedicado a sustentar que Machado, sobretudo na fase madura, atualizou o recurso clássico da emulação para dialogar criativa e irreverentemente com a tradição literária universal. Ao falar dos olhos dos personagens machadianos, Castro Rocha está interessado em investigar preliminarmente o imenso enigma – o mais repisado da literatura brasileira – do salto de qualidade dado por nosso maior escritor entre o romantismo convencional de “Iaiá Garcia”, de 1878, e a explosão criativa de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de 1881.
Na primeira fase, os olhos dos personagens de Machado conformam-se ao clichê “janelas da alma”. Neles é possível, com frequência e muitas vezes literalmente, “ler” pensamentos e emoções não expressos por palavras – leitura que é feita não apenas pelo escritor, e por meio dele pelo leitor propriamente dito, mas também por outros personagens. Muletas providenciais para o narrador, que tudo explica, por não haver motivação profunda que, bem examinados, sejam incapazes de trazer à tona, esses olhares sempre legíveis não eram uma invenção do escritor carioca, é claro. Pelo contrário: parte de seu efeito canhestro se deve ao fato de que o truque era antigo, ainda que revitalizado pela literatura romântica. “Os olhos aparecem na literatura mais do que qualquer outra parte do corpo”, diz Michael Faber em seu clássico “Dicionário de símbolos literários”, lembrando, entre outros, os olhos que “não se calavam” do poeta latino Ovídio.
Quando enfim tomou posse de sua genialidade, Machado mudou radicalmente o papel dos olhos em sua literatura. Estes passaram a ser um problema a mais – nunca uma solução. Podiam ser enganadores, com as “janelas da alma” dando lugar a um perigoso trompe l’oeil, como são em “Quincas Borba” os de Sofia quando Rubião se encanta com “aquele par de olhos viçosos, que pareciam repetir a exortação do profeta: Todos vós que tendes sede, vinde às águas”. E podiam ser também a própria imagem da indeterminação, da incerteza, como em “Dom Casmurro”.
Numa associação fácil, aqueles olhos multicoloridos de Bovary se refletem nos de Capitu, que eram “de cigana oblíqua e dissimulada” na famosa definição do agregado José Dias – que mais tarde muda de ideia e defende a moça, explicando ter confundido “os modos de criança com expressões de caráter”, deixando de ver que “essa menina travessa e já de olhos pensativos era a flor caprichosa de um fruto sadio e doce…”. Como se sabe, Bentinho prefere concordar com o juízo anterior e não com sua correção.
A diferença, evidentemente, é que sabemos acima de qualquer dúvida que Emma era adúltera, enquanto Capitu, acusada pelo marido pouco confiável, será para sempre diante de nós um ponto de interrogação. A velha transparência dos olhos que Flaubert tinha começado a turvar, ainda deixando uma margem segura para que Barnes falasse em “olhos raros e difíceis de uma adúltera trágica”, adquire em Machado de Assis a mais completa impermeabilidade, devolvendo como um espelho o olhar do próprio leitor, o olhar que perscruta a página – e que afinal, embora todo mundo fingisse não perceber, era desde o início o mais importante dessa história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário