Televisão
Com repercussão excepcional e casando velhas fórmulas com recursos de séries americanas, trama já é mais que um marco na história da novela brasileira
Nina tenta resgatar Tufão - Divulgação
Houve um momento, 30 ou 40 anos atrás, em que o último capítulo de uma novela da Globo tinha, literalmente, o poder de "parar o Brasil". Usar essa expressão nos dias de hoje seria, mais que um clichê, um exagero. Os horários do trabalho e da escola, a vida noturna com os amigos, a concorrência da televisão paga e da internet – tudo isso diminuiu o número de pessoas ligadas no folhetim do horário nobre (que passou, aliás, das oito para as nove horas). Ainda assim, a chegada do capítulo final de Avenida Brasil, que vai ao ar nesta sexta-feira, faz pensar naqueles velhos tempos.
Há duas medidas para o sucesso de uma novela: audiência e boca-a-boca. A trama assinada por João Emanuel Carneiro foi muito bem no primeiro quesito. Alcançou notáveis 49 pontos na semana passada e no capítulo de segunda-feira. No mesmo dia, obteve um share de 76%, o que significa que de cada 100 televisores sintonizados na TV aberta naquele horário, 76 exibiam a novela – um sinal de sua popularidade entre a "nova classe média". Quanto à repercussão, ela foi excepcional. Embora não seja a primeira novela a ganhar uma segunda vida na internet,Avenida Brasil estreitou de maneira inédita o casamento entre a teledramaturgia e as redes sociais. Ela frequentou os trending topics do Twitter, ocupou a linha do tempo dos usuários do Facebook, deu origem a memes e brincadeiras. Chamou inclusive atenção da imprensa estrangeira. É por isso que, ao chegar ao dia do encerramento, a trama já é mais que um marco na história da novela brasileira. Seja quem for o assassino de Max (e você certamente já fez sua aposta), ela se tornou um perfeito fenômeno pop.
Avenida Brasil plantou firmemente João Emanuel Carneiro no primeiro time de noveleiros da Globo. Ele soube casar velhas fórmulas do folhetim com truques mais recentes da taledramaturgia da emissora e com recursos tirados das séries americanas. Não teve vergonha de lançar mão do manjadíssimo, mas sempre eficiente, recurso do "quem matou?" na reta final da novela. Criou conflitos que se resolviam em poucos capítulos para personagens secundários que, assim, puderam brilhar. E, numa inovação pessoal, promoveu pelo menos cinco grandes reviravoltas na trama, que fizeram o ponto de vista do público sobre os protagonistas se alterar. Até a vilã Carminha (Adriana Esteves) se transformou, a certa altura, em vítima sofredora nas mãos do pai-monstro Santiago (Juca de Oliveira).
As técnicas de gravação fizeram justiça ao ritmo acelerado da história. Cenas de ação foram filmadas com a câmera na mão, para mostrar o ponto de vista do personagem. Muito difundido no cinema e nos seriados americanos, esse recurso era até então raro na TV aberta brasileira. Nada disso teria serventia se os personagens não fossem bem estruturados – e não tivessem encontrado os intérpretes adequados. O autor não identificou de imediato quem era mocinha ou vilã. Tanto Nina, a justiceira, quanto Carminha, a malvada, foram capazes de atitudes amorosas e de ações execráveis. As atrizes Débora Falabella e Adriana Esteves as viveram de maneira memorável.
As nuances que enriqueceram os protagonistas foram atribuídas também a núcleos secundários. Por isso, a família Tufão ganhou status de protagonista em alguns momentos da trama e representou o respiro cômico para o enredo pesado de vingança e traição. A naturalidade que tanto agradou aos telespectadores é resultado do espírito improvisação que reinou nas cenas da mansão do Divino. A diretora Amora Mautner deixou os atores livres para criarem seus cacos e soltar o falatório em cima do roteiro.
Com isso, brotaram algumas surpresas como a hilária Zezé (Cacau Protásio). A empregada doméstica e fiel escudeira de Carminha virou estrela nas redes sociais ao improvisar o refrão do forró Eu Quero Ver Você Correndo Atrás de Mim, que faz parte da trilha sonora, numa cena em que aspira o sofá e canta "Eu quero ver você me chamar de amendoim". A reprodução da cena no YouTube acumula mais de 400 000 visualizações.
Para não dizer que tudo foi impecável, a novela teve seus tropeços nas duas semanas finais. Após Carminha ter sido desmascarada pela família Tufão, surgiu um personagem que, até então, havia aparecido em pouquíssimas cenas e, de repente, se tornou o responsável por boa parte das desgraças. Santiago foi retratado como uma espécie de chefe de sucursal do inferno, tão mau a ponto de esconder joias roubadas dentro de brinquedos e fazer Lucinda (Vera Holtz) cumprir pena por um crime que ele mesmo cometeu, o assassinato de sua mulher e mãe de Carminha. O autor sugere nas entrelinhas que ele estuprava a filha. O personagem totalmente mau e, portanto, caricato, é típico de novelões.
Mas, o que importa? Nesta sexta-feira, a novela conseguiu influir em campanhas políticas. Mudou a rotina de milhares de negócios pelo Brasil, sobretudo bares e casas noturnas que montaram eventos especiais para mostrar o programa. Ensejou um levante de cidadãos no Twitter, obrigando a secretaria de Cultura de Recife a cancelar a exibição do último capítulo no Cine São Luiz (o povão reclamava que o evento era restrito a convidados). E deixou preocupados os operadores nacionais do sistema elétrico, uma vez que depois do término de programas com muitos espectadores, quando as casas retomam suas atividades normais, é comum um aumento súbito no consumo de eletricidade – um efeito conhecido como rampa de carga, que pode danificar as redes. Não é pouco. Só falta mesmo parar o país.
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