A frase de abertura do volume dois de O Segundo Sexo é também a mais famosa de toda a extensa obra de Simone de Beauvoir. Uma frase que, há mais de 60 anos, inspira gerações de mulheres a mergulhar no verdadeiro significado da condição feminina. No livro, Simone de Beauvoir evidenciou, pela primeira vez, que ser mulher não é algo naturalmente dado, mas uma construção social, histórica e cultural.
Hoje, a obra é alvo de críticas. Muitos intérpretes atribuem a Simone uma postura radical em relação aos homens; outros a acusam de misantropia. Em meio às críticas, a ousadia intelectual de Simone ao atribuir à condição feminina raízes culturais, históricas e sociais pode passar despercebida. Não deveria.
Como Simone de Beauvoir explica, foi exatamente assim – sem perceber, sem refletir, sem observar, sem participar – que as mulheres se tornaram “o segundo sexo”. Aquele que só se define em relação ao primeiro sexo, o masculino. Assim, a história e a cultura construíram das mulheres uma imagem invertida, tal qual um reflexo no espelho. Ao longo dos milênios e séculos, as mulheres só existiram em referência aos homens, como homens ao contrário, a versão fracassada, sem força, impotente e desprovida de poder do masculino.
Poder, potência, força, sucesso. Palavras que Simone investiga e que descobre serem concebidas como privilégios do sexo masculino até mesmo por muitas mulheres. Foi essa descoberta que levou os críticos a apontarem radicalismo e misantropia na obra. Quem faz essas acusações se esquece de que a ferocidade de suas palavras é consequência direta do contexto em que a obra foi escrita: a Europa do pós-Segunda Guerra.
Simone não é contra os homens, mas contra o fato de exercerem a dominação em palavras, gestos, atitudes e políticas. E isso acontece ainda hoje. Simone não é contra as mulheres, mas contra o fato de se submeterem voluntariamente à dominação. E isso também acontece ainda hoje, principalmente diante da justificativa de que biologicamente homens e mulheres são diferentes.
Publicado em 1949 na França, e depois traduzido para mais de 30 idiomas, o livro de Simone de Beauvoir mostrou que a imagem da mulher frágil, infantilizada, incapaz física ou intelectualmente, perniciosa, perigosa, suja, pode ser transformada. Simone desvenda a trama histórica da submissão feminina para, no fim da obra, falar sobre a construção da mulher independente. É uma reflexão difícil, que só 20 anos depois da publicação do livro foi assimilada pelo movimento feminista, nos anos 1970. Historicamente, a condição feminina tem sido reduzida à diferença biológica entre os sexos. E a própria Simone só foi incitada a confrontar essa redução alguns anos antes de escrever O Segundo Sexo.
Uma curiosidade que gosto sobre o livro é que para fazer a longa pesquisa para escrevê-lo, Simone agiu como uma investigadora anônima. Acordava cedo quase todas as manhãs para integrar a fila de estudantes que disputavam uma cadeira nas salas da Bibliothèque Nationale de France e buscavam acesso a sua valiosa coleção de livros. Simone de Beauvoir já era, então, famosa. Seus romances A Convidada, publicado em 1943, e O sangue dos outros, de 1944, fizeram sucesso. Suas ideias sobre liberdade, seu engajamento intelectual, as excentricidades de sua vida sexual e o relacionamento com Jean-Paul Sartre a colocavam em evidência. Ela poderia ter usado suas prerrogativas para obter as informações com mais tranquilidade. Mas isso seria agir contra suas próprias ideias sobre igualdade.
Precursor de estudos aprofundados sobre gênero, o livro perpassa vários campos do conhecimento humano: biologia, psicanálise, materialismo histórico, literatura, sociologia, filosofia, sexologia. Com sua pesquisa, ela desejava saber o que essas formas de reflexão diziam sobre a mulher. Como o pensamento era então quase totalmente dominado pelos homens, o que ela encontra não é nada lisonjeiro. Descobriu que em muitas teorias, ditas científicas ou filosóficas, a mulher aparece associada a satã, ao erro, ao perigo, ao mal, ao pecado, à fraqueza. Talvez por isso, Simone ouse nomear, em seu livro, com total franqueza, os laços sociais entre homens e mulheres na vida pública e também na vida particular. Não que ela ignore o amor e a paixão, mas o que ela encontra em sua investigação são outras palavras menos românticas: submissão, opressão, exploração, dependência, servidão (inclusive voluntária).
Com essas palavras fortes e com outras que, na Europa do pós-guerra, ainda eram tabus, como lesbianismo, menstruação, clitóris, masturbação – todas usadas sem eufemismos ou concessões –, Simone de Beauvoir chocou a França e o mundo. Ao menos no início, O Segundo Sexo foi negativo para Simone.
Ela foi acusada de ser contra os homens – nada mais falso para uma mulher que amou tantos e tão intensamente; de pregar a dissolução da família – que, é verdade, ela enxergava com restrições por ser a base na qual se reproduzem a submissão e a opressão da mulher. Recebeu insultos à sua sexualidade, à sua moral, à sua honra. Curiosamente, não à sua inteligência ou à solidez de suas ideias. O Segundo Sexo fez de Simone também persona non grata entre alguns políticos franceses. Esquerda e direita reagiram, e muito mal, à sua obra.
Hoje, passados mais 60 anos da publicação da primeira edição, nada disso importa. O livro é uma viagem profunda pela história da mulher, pelos fatos, mitos e experiências em torno do feminino. Para o bem e para o mal, ainda hoje, as ideias de Simone de Beauvoir assustam e chocam algumas mulheres e muitos homens. Ela escreveu O Segundo Sexo há 60 anos, mas ainda hoje o processo de tornar-se mulher pode ser vivido como um diálogo com as ideias que ela expôs ali.
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