quinta-feira 05 2013

Antigo romance chinês ainda desperta paixões

 Por Jennifer Schuessler- The New York Times News Service/Syndicate
Quando David Tod Roy entrou em uma loja de livros usados na cidade chinesa de Nanjing em 1950, ele era um jovem missionário americano de 16 anos à procura de um livro erótico.




Antigo romance chinês ainda desperta paixões
Quando David Tod Roy entrou em uma loja de livros usados na cidade chinesa de Nanjing em 1950, ele era um jovem missionário americano de 16 anos à procura de um livro erótico.
Sua presa foi uma cópia sem censuras de "Flor de Ameixa no Vaso de Ouro", uma narrativa pornográfica notável sobre a ascensão e a queda de um comerciante corrupto, escrito por um autor anônimo no final do século 16.
Até então, Roy havia encontrado apenas uma tradução incompleta para o inglês, que passava para o latim, por motivo de decoro, quando as coisas ficavam muito atrevidas. Porém, lá estava ela – uma antiga edição chinesa da obra completa – em meio a outros itens moral e politicamente suspeitos descartados pelos proprietários que ficaram receosos após Mao Zedong assumir o comando no ano anterior.
"Quando eu era adolescente, eu ficava animado com a perspectiva de ler algo pornográfico", lembrou Roy, hoje com 80 anos e professor emérito de literatura chinesa na Universidade de Chicago, recentemente por telefone. "Mas eu achei o livro fascinante também de outras maneiras."
Quem concorda são os leitores que acompanharam o esforço de quase 40 anos de Roy para verter o texto completo para o inglês, que acaba de ser finalmente concluído com a publicação, pela Princeton University Press, do quinto e último volume, "A dissolução".
O romancista Stephen Marche, elogiou em outubro, a Los Angeles Review of Books, a tradução magistral proposta por Roy para um romance ricamente enciclopédico dos costumes da dinastia Ming, que Marche resumiu, ao estilo sinopse de filme de Hollywood, como "uma mistura entre Jane Austen e pornografia pesada". Os colegas acadêmicos de Roy não estão menos impressionados com a sua erudição, que aparentemente não deixa de fora quaisquer alusões literárias ou detalhes culturais.
Ele é alguém que acredita ter como obrigação saber absolutamente tudo sobre o livro, até mesmo coisas que só são mencionadas de passagem', disse Wei Shang, professor de literatura chinesa na Universidade de Columbia. 'É preciso ter alguma espécie de teimosia para completar esse tipo de projeto.'
Ler a obra completa também pode demandar certa teimosia por parte dos leitores: ela é composta por cinco volumes, totalizando uma extensão proustiana (quase três mil páginas), um elenco numeroso, digno dos filmes de Cecil B. DeMille (mais de 800 personagens com nomes) e com um nível de detalhamento cotidiano que lembra o 'Ulisses' de Joyce – para não falarmos das mais de 4400 notas finais de Roy, cuja abrangência e precisão o colocam à altura dos obsessivos estudiosos ficcionais de Nabokov.
Elas tocam em assuntos que vão desde as referências literárias muitas vezes obscuras do romance e sugerem ler mais sobre 'o uso de flores do gênero impatiens e suco de alho para tingir as unhas das mulheres' até gírias obscuras da era da dinastia Ming cujo significado, observa Roy com orgulho, há muito tempo escapa até mesmo à compreensão de estudiosos nativos da língua chinesa.
'Ele não é apenas uma tradução; é também um livro de referência', disse Yihong Zhang, professor visitante da Universidade de Pittsburgh, que está traduzindo algumas das notas de Roy para o chinês como parte de sua tese de doutorado na Universidade de Estudos Estrangeiros de Pequim. 'Ele abre uma janela para a literatura e a cultura chinesa.'
Além disso, há o sexo, que contribuiu para despertar o fascínio pelo livro, mesmo que poucas pessoas realmente pudessem lê-lo. Na China de Mao, o acesso à edição sem censuras ficava restrito a altos funcionários do governo (que eram instados a estudar o modo como ele representa a corrupção imperial) e acadêmicos seletos. Hoje, continua sendo difícil encontrar as versões completas na China, apesar de a obra ser baixada facilmente em sites chineses na internet.
'Quando eu dei aulas a respeito, meus alunos ficaram boquiabertos, mesmo conhecendo a reputação do romance', disse Patricia Sieber, professora de literatura chinesa na Universidade Estadual de Ohio. 'O sadomasoquismo, o uso de objetos inusitados como brinquedos sexuais, o uso excessivo de afrodisíacos, o sexo em todos os tipos de circunstâncias nefastas – está tudo lá.'
O sexo narrado no romance também inspirou algumas apreciações modernas. O novo romance de Amy Tan, 'The Valley of Amazement', apresenta uma cena em que uma cortesã de certa idade, na Xangai do início do século 20, é convidada a reencenar uma cena de sexo particularmente degradante do clássico.
'Não tenho como dizer que dá para gostar de nenhuma das personagens', disse Tan sobre o antigo romance. 'Mas ele é uma obra-prima literária.'
No entanto, os estudiosos se apressam a acrescentar que o 'Chin P'ing Mei', como o romance é conhecido em chinês, tem muito mais do que apenas sexo. Trata-se da primeira longa narrativa chinesa a se concentrar não em heróis míticos ou aventuras militares, mas em pessoas comuns e na vida cotidiana, com os mínimos detalhes de alimentos, roupas, costumes domésticos, medicina, jogos e rituais fúnebres, preços exatos de quase tudo, incluindo ainda valores de subornos pagos a autoridades de diferentes estratos da hierarquia.
'É uma descrição extraordinariamente detalhada de uma sociedade moralmente degradada e corrupta', disse Roy.
Roy conta que o início de seu trabalho na tradução se deu na década de 1970. Até então, uma revisão da tradução de Clemente Egerton, de 1939, tinha vertido as partes obscenas latinizadas para o inglês. Contudo, essa edição ainda omitia as muitas citações precedentes de poesia e prosa chinesa, juntamente como muito do sabor autêntico do texto, diz Roy.
Assim, ele começou a copiar todas as linhas emprestadas da literatura chinesa antiga em blocos de notas, que, eventualmente, viraram milhares, e a ler toda a obra literária que se sabia ter circulado no final do século 16, para identificar as alusões.
O primeiro volume foi publicado em 1993, com ampla repercussão; o próximo veio oito anos depois. Alguns colegas chegaram a pedir a Roy que andasse mais rápido e diminuísse o número de notas. Em um determinado momento, um site chinês veio a noticiar que ele havia morrido em meio aos trabalhos.
Bem quando Roy estava prestes a concluir o último volume, ele foi diagnosticado com a doença de Lou Gehrig, o que descartou qualquer possibilidade de preparar uma edição condensada, como fez Anthony Yu, seu colega de Chicago, com sua aclamada tradução de 'Jornada ao Oeste', outro gigantesco clássico da era da Dinastia Ming.
'Eu sinto falta de ter algo em que me concentrar', disse Roy. 'Mas infelizmente, estou sofrendo com uma fadiga praticamente constante.'
Estudiosos atribuem a Roy (cujo irmão, J. Stapleton Roy, foi embaixador dos EUA na China entre 1991 e 1995) o resgate de 'Flor de Ameixa no Vaso de Ouro' de sua reputação no Ocidente como uma pornografia meramente exótica, introduzindo uma leitura mais política do livro.
Trata-se de um tipo de leitura já bastante reconhecida pelos comentadores na China, onde se acredita que o romance espelha os problemas de corrupção política e social dos quais os jornais estão repletos na contemporaneidade.
'Encontramos pessoas como Ximen Qing facilmente hoje. Não apenas na China, mas em toda parte', disse Zhang em Pittsburgh.

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