sábado 07 2013

Um Sete de Setembro entregue à arruaça e à estética da violência. Ou: Lamento, meus caros, ter estado, ao longo desses três meses, mais certo do que eu mesmo supunha ou gostaria


O povo, conforme o esperado, se mandou das ruas. Ou aproveitou o feriado, mesmo num sábado, para passear um pouco ou ficou em casa, cuidando dos afazeres domésticos, arrumando o armário, esperando o jogo da Seleção — essas coisas, em suma, que as pessoas normalmente fazem nos regimes democráticos. O permanente confronto com as forças da ordem costuma caracterizar situações de insurreição contra tiranias — o que não quer dizer, é bom notar, que os que assim se organizam sejam, necessariamente, flores que se cheirem. Às vezes, não! É perfeitamente possível haver uma luta em que ninguém tem razão. Mas interrompo essa pequena digressão para notar: se paradas cívicas são só um tributo que se presta ao calendário, esvaziadas, no mais das vezes, de qualquer conteúdo patriótico, atraindo a plateia para o espetáculo, não para a expressão de um valor afirmativo, não é menos verdade, então, que o maneirismo da desordem ocupou o lugar do maneirismo da ordem. Os que costumavam ir às ruas aplaudir por preguiça foram substituídos pelos que, agora, vão às ruas depredar por preguiça.
Os protestos, é bom notar, chegaram a ter, ainda que por um tempo breve, certo caráter cívico, de resistência: contra a corrupção, os desmandos, a falta de ética dos políticos… Uma fração dos homens comuns, dos sem-partido, dos contribuintes, da classe média que Marilena Chaui odeia, chegou a ir às ruas. Não era um engajamento, mas era uma expressão de insatisfação. Esses, no entanto, logo se tornaram os intrusos, e os protestos voltaram a ser protagonizados por seus atores originais: minorias delinquentes das mais variadas extrações, que prosperaram como o subproduto indesejado de 11 anos de permanente ataque às instituições promovido pelo PT. Escrevo que é um “subproduto indesejado” porque também os petistas não têm o que fazer com essa gente. Por mais que seja o beneficiário direto do desprestígio de instituições como Parlamento, Justiça e imprensa — afinal, é a única força realmente organizada do país; a outra é formada pelos militares, ausentes, como deve ser, da política —, para existir, o petismo precisa do reconhecimento da política como arena de resolução de conflitos.
Quando um petista como José Eduardo Dutra, ex-presidente do PT, lamenta ter de concordar com Reinaldo Azevedo na crítica que fiz à estupidez dita por Caetano Veloso, isso não implica que ele esteja se rendendo ao meu charme, aos meus valores, ao meu texto ou o que quer que seja; isso não implica que, em determinados assuntos e temas, possamos ter um núcleo comum de interesses ou comungar de certas estratégias, como sugere a ligeireza desinformada e tardiamente juvenil da tucanaça Elena Landau. Nada disso! Quando eu e Dutra repudiamos a convocação feita pelo cantor convertido em político do miolo mole, é porque ambos sabemos — como sabe qualquer pessoa com os meridianos ajustados, tenha lá que ideologia for — que a depredação da ordem como um maneirismo, como um valor em si, conduz ao cenário em que não pode prosperar nem o estado liberal, que seria do meu gosto, nem o estado petista — tenha lá que viés ideológico for — de Dutra.
Com efeito, liberais não têm o que fazer com essas erupções e irrupções de irracionalidade. Cabe, então, uma aliança estratégica entre o que eu representaria (atenção para o tempo do verbo) e o que representa Dutra? Ninguém, com um mínimo de seriedade, poderia fazer essa pergunta. Em primeiro lugar, porque eu não represento nada nem ninguém, só a mim mesmo. Em segundo lugar, porque não se trata de um inimigo comum, organizado, que obedeça aos comandos de um centro de deliberação. Em terceiro lugar, porque, sendo Dutra um petista, é certo que não vemos com os mesmos olhos a arena política.
Eu a entendo como o lugar de um confronto entre iguais, e a igualdade está no direito que todos os grupos têm à singularidade. O PT, cuja origem intelectual e moral é inequivocamente bolchevista — ainda que seja piada de salão afirmar que o partido seja, hoje em dia, socialista —, pensa essa mesma arena como uma luta que tem vitoriosos, com a derrota definitiva do inimigo. Daí que eu sustente, há muito, que o PT já não é mais de esquerda; é apenas um partido com uma concepção autoritária de estado, tendente à tirania se deixado por sua conta, ainda que cumprindo a mímica da consulta democrática.
Eu e Dutra repudiamos a fala de Caetano Veloso (não porque seja de Caetano, que mal sabe do que está falando) porque, agora sim, o abismo da desordem nem serve àquele que acredita que um partido possa ser o engenheiro da sociedade, subordinando as vontades às suas utopias redentoras e totalistas, nem serve àquele (no caso, a mim) e àqueles que entendem que a função principal do estado é garantir as liberdades individuais e a igualdade de todos os homens diante da lei. Nem serve àqueles que usam a tal “justiça social“ (e não importa a sinceridade com que cada um acredite nisso) como instrumento de fortalecimento desse partido e encabrestamento do estado por um ente de razão nem serve àqueles que têm claro que a diferença entre o estado da “justiça social” e a ditadura é só uma questão de grau. A coincidência para aí. No pronunciamento desta sexta, ainda que sem muita ênfase, Dilma voltou a ser reverente ao espírito das ruas. Eu, como notam, nunca fui e nunca serei porque não faço política — eu escrevo sobre política, o que é coisa distinta.
Gostem ou não, meu compromisso é dizer aos leitores deste blog — muitos deles são, sim, petistas e esquerdistas (e não é porque eu os paparique) — o que eu penso. Nem quando se falava na presença de mais de milhão de pessoas nas ruas e da “despencada” de Dilma eu me animei. Desde sempre considerei, reiterando o que disse há pouco, que achava que o ânimo original desses distúrbios era o resultado indesejado (até pelos petistas) da depredação das instituições. Desde sempre afirmei que a balbúrdia submetia o processo político a uma torção à esquerda, obrigando até mesmo as forças políticas que não se articulam no contato direto com as massas a ser reverente a esse “ruísmo” desinformado, truculento, doidivanas e ignorante. Desde sempre lamentei que amplos setores da imprensa, submetidos a um permanente ataque das hostes organizadas pelo PT, tenham decidido, de maneira que me parece desastrada e contraproducente, ceder ao suposto apelo libertário, ser reverentes a seus comandos, acatar as suas deliberações.
Em larga medida — e lamento ter de constatar que eu estava mais certo do que eu mesmo supunha —, a generalização dos protestos foi obra da imprensa, que decidiu inventar uma “Primavera à brasileira”, sem se dar conta de que o regime, por enquanto ao menos, é democrático. E não o fez porque seja antipetista ou antigovernista, como sugerem alguns cretinos — até porque todos os políticos, de todos os partidos, foram submetidos ao corredor polonês. Essa imprensa cedeu porque buscou se conciliar com o que entendeu ser a emergência de uma opinião pública ativa, reivindicadora, cidadã. Acuada pela crítica estúpida de que existe para vocalizar não mais do que o interesse das elites, cedeu à razão dos inimigos da liberdade, fez — e vem fazendo, com as exceções de praxe — um mau trabalho e se tornou, no esforço de retratar os anseios de uma coletividade, porta-voz involuntária e aliada objetiva de extremistas truculentos. Desde sempre, ademais — e deixei isso registrado também em vídeo, num dos debates da VEJA.com —, observei que esse processo teria influência muito pequena na movimentação dos atores que podem disputar as eleições presidenciais no ano que vem. Previ, e está registrado (e era óbvio, convenham), que Marina Silva seria a única a ganhar. Seu discurso, no mais das vezes incompreensível, é a expressão supostamente culta e organizada dessa algaravia que se traduz, no fim das contas, em ódio à política. Sempre que um político se torna beneficiário do repúdio à política, eu tenho a certeza absoluta de que estamos diante de uma coisa ruim.
Começando a caminhar para a conclusão
Não há povo na rua. Há arruaceiros e policiais. Não há propriamente — sim, há quem esteja fazendo um bom trabalho — jornalismo isento nas ruas, mas moços e moças temerosos do que será dito nas redes sociais. Ainda que escreva o que vou escrever com certo horror, a verdade é que a, por assim dizer, estética de Pablo Capilé, da Mídia Ninja, é outra força vitoriosa nesses dias. Obrigados pelos truculentos a se disfarçar de manifestantes, banidos dos protestos aos tapas pelos brucutus, impossibilitados de fazer o seu trabalho, os jornalistas se transformaram em cinegrafistas do iPhone. Desenvolveu-se, assim, uma espécie de versão jornalística do Dogma, com repórteres-manifestantes resfolegantes, a dizer coisas incompreensíveis, sob o pretexto de passar uma versão mais realista e quente dos fatos.
O povo desertou. Sobraram os arruaceiros, os truculentos e os idiotas, alimentados pela certeza de que a imprensa, na sua tentativa de disputar espaço com as redes sociais, lhes entregará o protagonismo da cena. E essa imprensa, por mais que se queira dizer o contrário, ainda tem o poder de uma chancela. De fato, o PT não gosta disso; de fato, eu não gosto disso. Mas não há um empate entre esses “não-gostares”. Sempre que o povo é expulso, como foi, de uma equação, cessam também as eventuais virtudes renovadoras de qualquer movimento, e o vitorioso objetivo é o statu quo — no caso em espécie, é o PT.
O arquivo do blog está aí. Foi o que antevi desde o primeiro dia. Foi o que aconteceu. Não porque me arrogue dotes de Pitonisa, não porque os fatos políticos obedecem necessariamente a uma lógica inextrincável, mas porque a história existe. Em que momento de nossa trajetória a liberdade se beneficiou da destruição do espaço e das instâncias do exercício dessa liberdade? A resposta se resume a uma palavra e deveria ter nos orientado, e à imprensa, desde sempre: nunca!
É o que tenho escrito aqui desde o começo de junho, movido por um dever e um compromisso: a honestidade intelectual — a despeito até mesmo do meu gosto pessoal e das minhas esperanças. Quando Dilma despencou, adoraria ter anunciado aqui o prenúncio de uma nova aurora… Ocorre que o primeiro dever de um crítico, de um analista, é não confundir as suas ilusões com a realidade.
Por Reinaldo Azevedo
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/

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