Na segunda-feira, filmes exibidos exploraram sexo, política e os limites da ficção
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"'Sanã' acompanha rotina de garoto albino no Maranhão"
Houve um curta-documentário excepcional na segunda-feira à noite – Sanã, do mineiro Marcos Pimentel. Talvez seja o filme mais rigoroso, independentemente de formato, já visto neste festival. O diretor acompanha um garoto albino numa ilha do Maranhão. Parecem os Lençóis. Vento, um areal que não tem fim. O espectador pode sentir certo estranhamento diante do personagem, mas o menino, com sua pele muito branca escalavrada pelo sol, move-se com facilidade nesse universo. É solitário, você poderia pensar num autista. Mas é um performático. O que ele faz, e a câmera o segue com rigor, é de uma beleza de cortar o fôlego. O documentário nos limites da ficção.
E logo vieram os longas – o documentário Repare Bem, de Maria de Medeiros, e a ficção A Bruta Flor do Querer, de Andradina Azevedo e Dida Andrade. O filme de Maria foi feito a pedido da Comissão de Justiça e Reparação. Uma ex-guerrilheira, Denise Crispim, presta depoimento doloroso sobre o horror que sofreu com a repressão da ditadura militar. Se o filme de Pimentel prescinde dos diálogos, mas não dos sons, o de Maria constrói-se na força da palavra. Ela disse que o filme foi feito com carência total de recursos, mas, se tivesse muito dinheiro, o faria do mesmo jeito, sem fricotes.
Denise Crispim reconstitui toda a sua dor e, ao mesmo tempo, enquanto fala, o filme retrata toda a experiência humana de uma mulher. Amor, maternidade, morte, renascer. Maria, atriz e diretora portuguesa, foi criticada por haver feito – segundo alguns críticos – um filme chapa-branca. Eles detestam o desfecho, com o pedido de desculpas do representante do governo e do povo brasileiros a Eduarda, filha de Denise e do guerrilheiro Bacuri, barbaramente assassinado pelos militares. Difícil imaginar Repare Bem sem o desfecho. Preste atenção no título – repare no que está sendo dito e mostrado, sugere a diretora, mas a reparação também é de outra ordem. Um reconhecimento, um desejo de reconstrução. Eduarda, criada na Itália e falando um português italianado, assume sua identidade brasileira.
Afeto foi uma palavra muito usada no debate do filme – tem sido muito usada nos debates aqui em Gramado. O afeto está no centro do filme seguinte, A Bruta Flor do Querer. Os diretores são também os atores. Expressam não propriamente o mal-estar, mas o ser de sua geração. De cara, há um diálogo entre os dois num carro e eles falam que hoje, após séculos de dominação, as mulheres estão tomando a dianteira. São elas que corneiam os homens, e cabe aos machos correr atrás do prejuízo. O filme é um exercício metalinguístico. Dois caras que querem fazer um filme. Sob uma aparência de transgressão e provocação – diferente, mas um pouco parecida com o filme do Recife, Tatuagem, de Hilton Lacerda: sexo e pênis ereto em cena –, A Bruta Flor do Querer é obra de dois românticos que colocam na tela o desejo de afeto de sua geração. Pode ser que Azevedo e Andrade sejam melhores que o filme, mas inteligência não lhes falta. A política em Repare Bem, uma aparente ausência de política e A Bruta Flor (mas só aparente). O festival está bem interessante.
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