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Publicado originalmente em 8 de agosto de 2012.
(Entrevista concedida a Isabela Boscove publicada na edição de VEJA que está nas bancas)
“O SEXO NÃO TEM REGRAS”
Iniciada como uma brincadeira na internet, a trilogia “Cinquenta Tons de Cinza”, da inglesa E.L. James, virou um fenômeno ao combinar romantismo com sadomasoquismo
Mais de 20 milhões de exemplares já vendidos nos Estados Unidos, outros 10 milhões nos demais países de língua inglesa, 500 000 na Alemanha em apenas cinco dias, dezenas de milhares de cópias voando das prateleiras no Brasil, desde a semana passada: a trilogiaCinquenta Tons de Cinza, da inglesa E.L. James, é um fenômeno inqualificável.
Escrita em prosa simples e não muito sofisticada, a história de como o jovem milionário Christian Grey se apaixona pela estudante virgem Anastasia — ou Ana — Steele é um romance tão descabelado quanto a criação que a inspirou, a série adolescente Crepúsculo — exceto pelo fato de que Christian e Ana protagonizam cenas vívidas de sadomasoquismo, descritas em pormenores.
A combinação curiosa deu até origem a um novo termo, mommy porn, ou “pornô para mamães”. Vai também virar filme, sob supervisão da autora — uma londrina de seus 40 e tantos anos, filha de chilena e escocês, muito simpática e falante.
Casada e mãe de dois adolescentes, Erika Leonard fala de como foi pega de surpresa pelo sucesso, das reviravoltas em sua vida e, claro, de sexo.
O sadomasoquismo é uma fantasia feminina?
Creio que é uma fantasia que as mulheres não sabem ter até deparar com ela. Por razões óbvias, trata-se de algo muito subterrâneo, um tabu. Portanto, a maioria das mulheres não conhece os princípios básicos do sadomasoquismo — e essa novidade, em Cinquenta Tons, acabou se revelando muito atraente para as leitoras.
Mas as objeções que os críticos de Cinquenta Tons fazem à dominação sexual que Christian Grey impõe a Ana Steele são na maioria de caráter feminista — o tabu, hoje, é a ideia de uma mulher se submeter a um homem, não?
As mulheres não querem e não devem ser submissas, mas estamos falando aqui do que acontece no quarto, a portas fechadas. É bem sabido que a sexualidade ignora regras, e experimentar coisas diferentes com o parceiro pode ser um bocado divertido. Não significa que a submissão vai continuar fora do quarto, ora.
Fico ofendida quando alguém diz que estou contribuindo para um retrocesso da condição feminina. Que bobagem! O que Cinquenta Tonsfez, na verdade, foi encorajar as mulheres a voltar a falar sobre sexo — e essa é a razão pela qual a trilogia, antes de ser encampada pelo mercado editorial, foi um fenômeno viral na internet. Isso não é retrocesso. É avanço.
Existe muita ficção picante feita para mulheres. Por que sua trilogia, especificamente, se tornou um fenômeno?
A maior parte dessa ficção é produzida não sob impulso criativo, mas como um plano de marketing: vamos atender às demandas desse segmento demográfico com um produto talhado para ele. Mas nem que eu quisesse eu seria capaz de conceber um livro como estratégia de marketing. Sou uma diletante que começou a escrever sobre dois personagens que lhe vieram à cabeça e que foi sendo levada pela história deles.
Minha trilogia pode ter defeitos, mas a falta de autenticidade não é um deles. O meu interesse por Christian e Ana é genuíno e, nos termos do mercado editorial, inocente.
O que a levou a trocar sua carreira como gerente de produção em TV pela escrita?
Uma coincidência. Eu estava muito infeliz no último emprego — e, no mesmo momento, vi por acaso o primeiro filme da série Crepúsculo. Adorei. Pedi então ao meu marido que me desse o livro como presente de Natal. Ele me deu a série toda, e eu a li inteirinha, de cabo a rabo, em cinco dias. Antes do Ano-Novo já tinha terminado — e só não a recomecei do início imediatamente porque me sentei ao computador e comecei a escrever. Foi como se alguém tivesse acionado um interruptor em mim.
No princípio, escrevia para me consolar da insatisfação no trabalho. Mas a coisa foi ganhando vulto. Escrevi um romance entre janeiro e abril, e mais outro nos meses seguintes. Nenhum dos dois, aliás, viu a luz do dia até hoje: eu teria de mexer muito neles até deixá-los em condições mínimas de publicação.
O que a seduziu em Crepúsculo?
O fato de ser um romance tão assumido e tão desavergonhado no seu romantismo — feito sem ironia, sem tentar parecer mais do que é. E achei-o também muito erótico, embora seja tão casto.
Como essa brincadeira levou a Cinquenta Tons?
Descobri a fan fiction — sites em que fãs de determinado livro escrevem seus próprios contos ou livros tendo o original como inspiração. Achei que poderia ser um exercício divertido, e das minhas incursões nele me veio a ideia do que viria a ser Cinquenta Tons.
Mas era estritamente um passatempo. Nunca, nem nos meus devaneios mais delirantes, imaginei que a trilogia se tornaria o que se tornou. Mesmo quando o livro começou a fazer sucesso na internet, meu sonho se limitava a ver o livro exposto na vitrine de uma livraria — um único exemplar que fosse. E esse parecia então um sonho distante: Cinquenta Tons foi publicado originalmente por uma pequena editora australiana, em forma de e-book ou de edição impressa sob encomenda, que saía caríssimo para o freguês.
Os dois primeiros romances que a senhora escreveu, aqueles que nunca viram a luz do dia, têm algo em comum com Cinquenta Tons?
O primeiro também é um romance erótico, e o segundo tem elementos sobrenaturais. Embora sejam enredos completamente diferentes do de Cinquenta Tons, são ambos histórias de amor adultas. Isso é o que me interessa, histórias de amor — e o fato é que, quando as pessoas se apaixonam e começam uma relação, elas fazem sexo. Muito sexo, se não me falha a memória.
A senhora nasceu e morou a vida toda na Inglaterra. Por que então Cinquenta Tons se passa nos Estados Unidos, com personagens americanos?
Porque ele nasceu de um exercício de fan fiction de Crepúsculo, e eu não queria mudar o cenário geral nem a idade aproximada dos personagens. É claro que escrever em “americano” não foi fácil: faltam-me as referências culturais, o conhecimento das expressões idiomáticas do dia a dia — coisas que só conheço de filmes e seriados. É bem possível que eu tenha cometido escorregões, mas até agora nenhum leitor americano reclamou.
Talvez porque eles estejam mais preocupados com outros aspectos do livro?
O sexo, claro. Tenho estranhado um pouco a reação da imprensa e do público americanos: às vezes eles falam de Cinquenta Tons como se a trilogia fosse escandalosamente pornográfica. Ora, o sexo, inclusive o sexo descrito em termos gráficos, é frequente na ficção romântica.
Eu mesma, nos meus 30 anos, quando tinha de andar horas de metrô todo dia, adorava passar o tempo lendo autores americanos cujos livros pingavam sexo. Eu dobrava o livro no meio, para a capa e a contracapa ficarem encostadas e ninguém perceber com o que é que eu estava tão entretida.
Acho que o que chama atenção em Cinquenta Tons é o sadomasoquismo. Mas a minha versão dele é ligeiríssima se comparada com a coisa real.
A senhora recebe muita correspondência de fãs?
Dezenas de e-mails todos os dias. Eles vão desde congratulações até comentários sobre como a trilogia apimentou a vida sexual da leitora. E, em alguns casos, recebo mensagens de leitores e leitoras que, assim como Christian, sofreram abuso sexual na infância.
Algumas dessas mensagens são de levar às lágrimas. Então, por mais que se comente o sexo explícito do livro, acho que há também outras razões que fazem os leitores envolver-se com ele.
Qual a sua opinião sobre o termo “mommy porn”, que entrou em circulação por causa de Cinquenta Tons?
A mim parece que é uma dessas expressões que jornalistas adoram criar para categorizar coisas novas. Cinquenta Tons trata de uma relação consensual entre dois adultos. Não me incomoda que apliquem a palavra “porn” ao livro, portanto, porque ela perdeu o sentido de designação da pornografia de fato, no seu cunho explorativo e abjeto.
Hoje em dia tudo é “porn”: revistas de arquitetura e decoração são “property porn”, programas de culinária na televisão são “food porn”. Qual a importância de um “porn” a mais ou a menos?
Vir de outra profissão e não ter sido treinada como escritora atrapalhou ou deu à senhora mais liberdade para desprezar as convenções literárias que não lhe interessavam?
Ajudou muito mais do que atrapalhou. Eu tinha uma boa carreira e poderia ter continuado nela até o fim da vida. Escrevia para mim mesma e, portanto, fazia-o livre de angústia e de preocupações. Acho sinceramente que esse prazer na escrita transpira nas páginas dos livros e responde ao menos em parte pelo sucesso deles. O difícil, agora, é compreender essa criatura que a minha vida se tornou.
A senhora já se deu conta de que não há caminho de volta?
Não, não completamente. Até porque haverá: um dia essa comoção vai arrefecer. Por isso me orgulho um tantinho de poder afirmar que sou a mesma pessoa de antes de Cinquenta Tons. Não mudei, e sei que essa integridade me será útil no futuro.
Mas a trilogia a deixou rica, não?
Tento não pensar nisso. Aliás, nem preciso tentar: outro dia fiquei presa no metrô, por causa de um problema na linha, e os amigos com quem eu estava indo me encontrar perguntaram: “Mas por que você não tomou um táxi?”.
Não tomei porque nunca teria tomado, ora. Estava bem no metrô, vez por outra ele atrasa, e é assim que as coisas são. Não pretendo sair torrando dinheiro por aí. A bem da verdade, meu marido e eu fazemos o possível para esquecer que ele está lá, no banco.
Compramos um carro novo e tiramos longas férias em família, nós dois e nossos meninos, de 17 e 15 anos. Não há mais nada em que eu sinta necessidade de gastar neste momento. Depois, veremos.
A senhora saiu, da noite para o dia, de uma vida normal para uma roda-viva de viagens, contratos, sessões de autógrafos e entrevistas. Tem sido difícil lidar com a celebridade súbita?
Aqui na Inglaterra ninguém me reconhece, ou, se reconhece, não demonstra, o que ajuda a manter a aparência de normalidade da vida. As sessões de autógrafos são uma diversão: adoro conhecer as leitoras, e não me conformo com as intimidades que elas me contam. As entrevistas, tudo bem — exceto as de TV. Odeio com todas as minhas forças aparecer na TV.
Passei a vida do outro lado da câmera, e me sinto até meio mal, fisicamente, depois. Suponho que tenha algo a ver com vaidade: se eu fosse jovenzinha, magra e linda, talvez até gostasse. Mas acho que, na maior parte das vezes, essa aversão vem de essa ser uma situação fora do meu controle: não sei como vou aparecer no vídeo, como o material vai ser editado — sabe como é, de alguém Christian Grey tinha de herdar essa obsessão controladora.
Essa, eu diria, é a parte mais difícil da celebridade súbita. Sempre fui uma pessoa organizada, tanto que fiz da capacidade de organização uma profissão na TV. Hoje, quando estou a trabalho, há uma multidão encarregada de “cuidar” de mim: é para lá que a senhora vai, este é o hotel, aqui está o carro, a tal hora viremos buscá-la ou lhe dar de comer. Deve haver quem goste, mas eu acabo me sentindo uma incapaz.
Seus filhos demonstraram algum interesse na leitura deCinquenta Tons?
Não, não, não. Meus meninos não leem nada, de jeito nenhum. Com a exceção de ameaçá-los com uma arma, já tentamos de tudo, mas parece que, para eles, não ler é uma questão de honra.
Nesse caso em particular, acaba sendo um alívio. Não quero nem imaginar meus garotos lendo Cinquenta Tons. Nem eles, claro: mamãe e sexo são duas ideias que não vão bem juntas.
Eles sabem por alto do que se trata. Sabem que tem um lado salaz, que é gráfico, que está fazendo sucesso — e têm orgulho desse sucesso, por mim. Mas dispensam maiores detalhes.
Outro dia, aliás, uma leitora de apenas 15 anos veio falar comigo. Tive vontade de dar um pito nela: “Sua mãe sabe que você está lendo isto aqui?”.
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