terça-feira 25 2012

Chocolate contra o crack


Drogas

Em São Bernardo do Campo, alimentos calóricos, filtro solar e protetor labial têm funcnionado melhor que as pistolas elétricas nas cracolândias. Cidade mantém 250 usuários em tratamento

Pâmela Oliveira, do Rio de Janeiro
Dependente de crack durante oficina profissionalizante
Dependente de crack durante aula na oficina profissionalizante (Divulgação )
As levas de usuários de crack que perambulam pelas cidades brasileiras não deixam dúvida: as pedras vendidas por poucos reais são uma ameaça para além do alcance de medidas isoladas de combate ao crime e de assistência social. A proliferação das cracolândias tem característica de epidemia, de sintoma da miséria e de um grave problema de segurança pública – assim como as demais atividades ligadas ao tráfico. Soluções mais radicais, como a internação compulsória, surgem como medida extrema para submeter menores de idade ao tratamento, mas é sabido que dificilmente se consegue manter em uma clínica tanta gente, por tanto tempo.
Governantes não deveriam nem podem cruzar os braços, mas até quando há vontade política e recursos o combate ao crack é complexo. Como um mal relativamente recente, não há uma cartilha para gestores envolvidos no processo.
Algumas iniciativas, no entanto, começam a chamar atenção por seus resultados positivos – ainda que não se possa dizer que há uma vitória contra a droga. Em São Bernardo do Campo, na região do ABC paulista, a política de abordagem aos dependentes químicos é apontada como modelo pelo Ministério da Saúde. O inusitado dessas medidas está na forma nada agressiva com que as equipes do município lidam com os usuários da droga.
Em vez de pistolas elétricas, sprays de pimenta e outros materiais fornecidos pelo Ministério da Justiça, através do programa Crack, É Possível Vencer, assistentes sociais, psicólogos e integrantes das equipes multidisciplinares recorrem a chocolate, água de coco e muita conversa. “Em hipótese alguma usamos armas nas abordagens aos dependentes de crack. Tratamos o usuário como um doente, como um problema de saúde e não de polícia”, explica Arthur Chioro, secretário de Saúde de São Bernardo do Campo. O problema, claro, é também – e muito – de polícia. Mas a cidade tem preferido separar as ações junto aos usuários das operações policiais.
“Nossos agentes de saúde chegam ao local onde estão os usuários, sentam, oferecem um chocolate e tentam a primeira abordagem”, explica Chioro. Segundo ele, há no momento cerca de 250 dependentes químicos em tratamento. Esse dado – a quantidade de jovens em tratamento – é um indicativo de que há alguma política em vigor. Na capital paulista, por exemplo, a Secretaria Municipal de Saúde não sabe informar quantos dependentes de crack recebem algum tratamento no momento. O órgão limitou-se a informar que não seria possível fazer o levantamento, a pedido do site de VEJA.

O ponto de virada do que vem sendo feito em São Bernardo, de acordo com David Abdo Benetti, coordenador da equipe do Consultório de Rua, que busca os usuários pela cidade, é a conquista da confiança do dependente – algo dificílimo entre adolescentes fragilizados, subnutridos, muitas vezes com sintomas de problemas psíquicos e em constante estado de “fissura” pela falta da droga.
A tarefa não é simples. Benetti é especialista em dependência química pela Escola Paulista de Medicina e conta com uma equipe formada por médicos, enfermeiros, psicólogos e agentes redutores de dano. Em São Bernardo do Campo, conta ele, o consumo de crack costuma acontecer em locais fechados, sob viadutos. Para entrar nas “cenas de uso”, a equipe pede permissão aos dependentes. Um kit saúde com água mineral, alimentos calóricos e protetores de lábio e pele são oferecidos aos jovens, para reduzir as queimaduras pelo calor produzido pelo cachimbo usado para consumir a droga.

“É gente que se aproxima, pergunta se alguém está com dor, com alguma lesão e oferece ajuda. Médico, psicólogo, todo mundo senta na calçada, na pedra, olha no olho. Nossa tecnologia é a conversa, o convencimento. Nós não exigimos que ninguém pare de fumar o crack de uma hora para outra. O primeiro passo é oferecer saúde para ganhar o dependente aos poucos”, conta David. “E conseguimos tirar muitas pessoas das ruas. Às vezes demora anos, mas acontece”.
Divulgação
Dependente de crack na República Terapêutica
Dependente de crack na República Terapêutica

A lógica é a de redução de danos. O conceito já adotado, por exemplo, em festas rave, onde há grande consumo de drogas sintéticas que levam o corpo a desidratar. A medida, nesse caso, é a simples distribuição de água. Certamente essa medida não impede o consumo. Mas evita o agravamento dos casos e pode ser a diferença entre a vida e a morte.
Atendimento – Todo o esforço de convencimento, no entanto, seria ineficaz sem uma rede de saúde articulada, pronta para manter o dependente em tratamento. Todos os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) funcionam 24 horas. A cidade conta ainda com repúblicas terapêuticas. São casas destinadas a receber dependentes em tratamento que não têm onde morar.
“Nesses locais eles fazem comida, lavam suas roupas , começam a receber a visita de familiares. Tudo é acompanhado de perto por funcionários que se revezam em turnos, mas o funcionamento é como o de uma casa comum. A única exigência é que a pessoa vá às consultas ambulatoriais nos CAPs e participe da atividades de geração de renda. Alguns fazem artesanato, pinturas, outros fazem aulas de culinária para aprender a cozinhar e ter uma profissão. Nosso objetivo é que aquela pessoa seja reinserida na sociedade”, explica Chioro.

O município não realiza a internação de pacientes em clínicas de recuperação. A internação para desintoxicação, quando necessária, ocorre em hospitais gerais do município ou conveniados. Esse é um aspecto a mais da dificuldade de combate ao crack. Receber usuários para desintoxicação na rede pública regular de saúde é uma alternativa viável, desde que, obviamente, essa estrutura comporte o novo fluxo de pacientes. E que esteja preparada para as particularidades desse novo tratamento.
Conselheiro do Ministério da Saúde no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, o psicólogo Aldo Zaiden defende a política de São Bernardo do Campo. “Tirar a pessoa da droga com uma internação prolongada é mais garantido. Mas isso não garante mecanismos para que no retorno à vida normal a pessoa não volte a usar a droga. O programa de São Bernardo tira as pessoas das ruas, faz com que voltem a estudar, a trabalhar e a conviver com a família. É um bom exemplo”, afirma Aldo, que é contrário à internação compulsória, já adotada para menores no Rio e que poderá ser estendida a adultos.
“A experiência mostra que a internação compulsória não funciona. Mais de 97% dos que são internados compulsoriamente voltam a usar o crack”, afirma.

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