A BBC conta em 10 frases os principais marcos do
mandato de Mujica, que neste domingo passará a faixa presidencial ao
ex-presidente Tabaré Vázquez, também da Frente Ampla.
1. "Eu não sou pobre, eu sou sóbrio, de bagagem
leve. Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha
liberdade."
Muitas vezes ele é chamado de o "presidente
mais pobre do mundo", mas José Mujica diz que não é pobre, que o que faz é
viver como a maioria dos uruguaios que governa.
Ele mora na mesma casa de campo há décadas, com sua
mulher, Lucia Topolansky, e sua cadela de três patas, Manuela.
Seu estilo simples, mas não uma vida "austera" - uma
palavra que lembra, segundo ele, os cortes sociais na Europa- despertou certa
desconfiança entre seus compatriotas no início, quando eles acreditavam que o
país passaria vergonha por ter um presidente que viaja em um carro velho, usa
sapatos alpargatas e dirige um trator.
No entanto, ele triunfou no mundo, onde sua
humildade foi aplaudida. Seus discursos na Organização das Nações Unidas e suas
entrevistas para canais de todo o mundo foram compartilhadas sem parar nas
redes sociais.
Mujica também parece ter conquistado a maioria dos
uruguaios, já que deixa o governo com um índice de aprovação de 65%, de acordo
com uma pesquisa recente da empresa Equipos Mori.
2.
"Não é bonito legalizar a maconha, mas pior é dar pessoas ao narcotráfico.
O único vício saudável é o amor."
Talvez uma das leis que mais tenha dado fama internacional a
Mujica foi a que colocou nas mãos do Estado a regulação estatal da produção,
venda, distribuição e consumo de maconha, aprovada em dezembro de 2013, mesmo
com a oposição da maioria dos uruguaios.
Essa lei, ainda em desenvolvimento, tem como
objetivo frear o avanço do tráfico de drogas e regular um mercado que, de
acordo com Mujica, cresce na sombra e está nas mãos de criminosos.
Foram estabelecidos limites para cultivo e venda de
maconha, bem como registros de consumidores e clubes de fumadores.
A regra tornou o Uruguai o primeiro país do mundo
com um regulamento tão abrangente.
3.
"O casamento gay é mais velho do que o mundo. Tivemos de Júlio César a
Alexandre, o Grande. Dizem que é moderno e é mais antigo do que todos nós. É
uma realidade objetiva. Existe. E não legalizar seria torturar as pessoas
desnecessariamente".
Em agosto de 2013, entrou em vigor a lei do
casamento igualitário, o que fez o Uruguai o segundo país na América Latina,
depois da Argentina, a reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Embora ele tenha recebido críticas da Igreja
Católica - menos influente aqui do que em outros países da região-, a medida
foi aprovada por uma larga maioria dos legisladores da base do governo e da
oposição, gerando menos controvérsia do que outras leis de questões sociais
como o aborto ou a maconha.
4. "Legalizando e intervindo, é possível conseguir que muitas mulheres voltem atrás em sua decisão, sobretudo aquelas de setores mais humildes ou que estão sozinhas."
Em 2012, o Uruguai tornou-se, juntamente com Cuba, o único país
latino-americano a legalizar o aborto -não sem controvérsia.
À época, Mujica disse que a descriminalização
poderia não só evitar mortes em interrupções de gravidez feitas
clandestinamente, mas também poderia levar a uma redução no número de abortos.
"Todo mundo é contra o aborto. Mas se você dá
apoio a uma mulher sozinha que precisa tomar esta decisão, alguns pensam que
muitas iriam desistir", disse.
5.
"Somos meio vagabundos, não gostamos tanto de trabalhar. (...) Ninguém
morre por excesso de trabalho, mas não é um país corrupto, somos um país
decente."
Com estas palavras, ele fez alguns desafetos entre
os uruguaios. Suas declarações causaram muita dor de cabeça para seus
assessores.
E, embora ele deixe o país com altos índices de aprovação,
muitos uruguaios dizem que nem tudo é tão idílico como os estrangeiros podem
ser levados a acreditar ao ler reportagens publicadas sobre o país.
Mujica reconhece que nem tudo foi feito e muitas
vezes dá como exemplo de sua lista de pendências a falta de infraestrutura, a
deterioração da educação ou o aumento da insegurança.
Muitos uruguaios também lembram que, durante seu
mandato, viveram episódios que tinham pouco a ver com o "país das
maravilhas" que aparecia na imprensa estrangeira.
Isso aconteceu, por exemplo, quando cerca de 12 mil
toneladas de lixo se acumularam nas ruas de Montevidéu em uma greve de lixeiros
em abril de 2014.
Ou com as grandes greves de professores que têm
ocorrido nos últimos anos para exigir melhores salários e condições, que
geraram protestos em escolas e faculdades.
6.
"Essa velha é pior que o caolho. O caolho era mais político, ela é mais
teimosa."
O caolho a quem Mujica se referia era, no caso, o
falecido presidente da Argentina, Néstor Kirchner. A velha era sua mulher,
Cristina Fernandez Kirchner, o atual presidente.
Mujica foi flagrado falando assim da colega em 2013.
Ele achava que o microfone estava desligado.
O uruguaio pediu "sinceras desculpas" por
suas palavras, embora a relação entre os dois países tenha passado por momentos
mais graves do que algumas palavras mal colocadas.
Em 2014, o governo da Argentina informou ao Uruguai que iria
recorrer à Corte Internacional de Justiça de Haia (CIJ), alegando que seu
vizinho violara o acordo fechado no tribunal no caso da fábrica de celulose UPM
(ex-Botnia) localizada em um rio que os dois países compartilham.
O Uruguai e a Argentina haviam travado uma disputa
na CIJ em 2006 por causa da construção da papeleira. O conflito havia terminado
em 2010 quando o tribunal permitiu a construção, recomendando a criação de uma
comissão binacional para avaliar o seu impacto ambiental.
Embora os dois países sejam importantes parceiros
comerciais, houve alguns atritos na área no mandato de Mujica.
No entanto, o ex-guerrilheiro sempre defendeu a
fraternidade de seu povo com o argentino: "O Uruguai é um país meio
esquizofrênico: eles sugam o sangue dos argentinos e, depois, cospem".
Mas o caso da "velha e do caolho" não foi
a única vez que Mujica teve problemas por causa de suas palavras. Após a
punição da FIFA ao jogador de futebol Luis Suárez por um incidente em uma
partida da Copa do Mundo no Brasil, o presidente do Uruguai lançou uma mensagem
controversa às autoridades do futebol mundial:
"A FIFA é um bando de velhos filhos da
puta".
7.
"Eu acho que nós estamos sendo usados como ratinhos de laboratório. Por
que a Phillip Morris está prestando tanta atenção em um país tão pequeno? Eu
tenho certeza que eles vendem mais cigarros em qualquer bairro de Nova York do
que no Uruguai."
José Mujica herdou de seu antecessor -e sucessor-
Tabaré Vázquez uma longa disputa com a fabricante de cigarros Philip Morris
International (PMI), que acusa o Uruguai de prejudicar o livre comércio com
medidas contra o tabaco.
As advertências contra o mal provocado pelo cigarro
em 2009 chegaram a ocupar, por lei, 80% dos pacotes -espaço maior que em
qualquer outro país. E desapareceram dos maços as palavras "light",
"mentolado" ou "ouro", restando apenas a marca do cigarro.
A disputa será solucionada pelo Centro Internacional
para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos, uma agência do Banco Mundial.
O presidente do Uruguai argumenta que a Phillip
Morris tenta impedir as políticas anti-tabagismo rigorosas do Uruguai como um
aviso a outros países que cogitem implementar medidas semelhantes.
De acordo com a empresa, eles desejam somente ser
ressarcidos pelos danos de US$ 25 milhões em perdas comerciais.
8.
"Tive que aguentar 14 anos em cana (...) Nas noites que me davam um
colchão eu me sentia confortável, aprendi que se você não pode ser feliz com
poucas coisas você não vai ser feliz com muitas coisas. A solidão da prisão me
fez valorizar muitas coisas."
José Mujica militou, quando jovem, no Partido
Nacional (hoje um dos seus principais opositores) e foi um dos fundadores, nos
anos 60, do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros, uma guerrilha urbana de
esquerda que praticava assaltos, sequestros e execuções.
Por isso, passou 14 anos preso, parte do tempo em um
calabouço, sem acesso a livros ou contato humano. Ele conta que falava com
animais para manter sua sanidade.
Sem dúvida, esses anos marcaram sua maneira de ver o
mundo e também algumas das suas políticas.
Em 2014, o país recebeu um grupo de seis prisioneiros da base
americana de Guantánamo, em Cuba, uma medida que foi criticada pela oposição e
a qual se opõe a maioria dos uruguaios.
Sob sua liderança houve uma forte controvérsia sobre
a tentativa do partido do presidente, a Frente Ampla, de aprovar uma lei para
investigar as violações dos direitos humanos cometidas durante o último governo
militar (1973-1985).
A chamada Lei de Anistia havia sido submetida a um
referendo em duas ocasiões antes da presidência Mujica e população a rejeitou.
Mujica foi contra a anulação da lei, argumentando
que seria reabrir feridas e colocar a estabilidade do país em risco: "Eu
não sou viciado em viver olhando para trás, porque a vida é sempre o futuro e
todos os dias amanhece."
9.
"O que é que chama a atenção mundial? Que vivo com pouco, em uma casa
simples, que ando em um carrinho velho, essas são as notícias? Então este mundo
está louco, porque o normal surpreende."
Nos últimos anos, centenas de meios de comunicação
estrangeiros chegaram ao o país sulamericano intrigados com a vida de Mujica.
"Isso me preocupa muito, me preocupa como anda
o mundo", disse ele à BBC Mundo em uma entrevista em dezembro.
"Eu vivo como vive a maior parte de meu povo,
na política o normal teria que ser o meu modo de vida", acrescenta.
"Vou à Alemanha e me dão um Mercedes Benz para
andar daqui até a esquina - que tem uma porta que pesa três mil quilos- e 50
motos na frente e 50 atrás. Não concordo com isso", diz ele.
"Eu acho que os governos, presidentes, devem se
expressar em todo o tom da sua vida, a sua linguagem, sua maneira de ser, seu
modo de vestir, nas relações públicas, como seu povo vive".
10.
"Sim, eu estou cansado, mas isso não para até o dia em que me coloquem em
um caixão ou quando eu for um velho esquecido."
Mujica reconhece que os cinco anos no cargo o
deixaram exausto, mas não pretende se aposentar.
"Eu não vou ser um velho aposentado que vai
para um canto escrever suas memórias. Eu não vou escrever nada, não tenho
tempo, tenho coisas para fazer".
O presidente planeja abrir uma escola de negócios
agrícolas em um galpão atrás de sua casa.
"Vai começar em março, para aproveitar a terra
que temos, os meios que temos e assim me divirto com os garotos do
bairro", disse.
E, certamente, tornar-se o principal conselheiro de
sua mulher, Lucia Topolansky se, como as pesquisas sugerem, ela se tornar a
nova prefeita de Montevidéu após as eleições de maio.
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