Por Vitor Vilela Guglinski – 15/02/2016
Identificar quando uma pessoa jurídica poderá ser considerada consumidora é um dos temas mais inquietantes e instigantes para o estudioso do Direito do Consumidor. É campo bastante fértil, demandando bastante esforço exegético da norma consumerista, e foi tema de recente julgado da 4ª turma do STJ, por nós analisado nesta oportunidade, em que aquela Corte Superior reconheceu o enquadramento de uma pessoa jurídica ao conceito de consumidor, estampado no art.2º do CDC, fundamentando o acórdão na teoria finalista como sendo a aplicável à espécie, rechaçando-se a alegação de vulnerabilidade, sustentada pela recorrente.
Veja-se:
DIREITO DO CONSUMIDOR. PESSOA JURÍDICA. INSUMOS. NÃO INCIDÊNCIA DAS NORMAS CONSUMERISTAS.
In casu, a recorrente, empresa fornecedora de gás, ajuizou na origem ação contra sociedade empresária do ramo industrial e comercial, ora recorrida, cobrando diferenças de valores oriundos de contrato de fornecimento de gás e cessão de equipamentos, em virtude de consumo inferior à cota mínima mensal obrigatória, ocasionando também a rescisão contratual mediante notificação. Sobreveio sentença de improcedência do pedido. O tribunal de justiça negou provimento à apelação. A recorrente interpôs recurso especial, sustentando que a relação jurídica entre as partes não poderia ser considerada como consumerista e que não é caso de equiparação a consumidores hipossuficientes, uma vez que a recorrida é detentora de conhecimentos técnicos, além de possuir fins lucrativos. A Turma entendeu que a recorrida não se insere em situação de vulnerabilidade, porquanto não se apresenta como sujeito mais fraco, com necessidade de proteção estatal, mas como sociedade empresária, sendo certo que não utiliza os produtos e serviços prestados pela recorrente como sua destinatária final, mas como insumos dos produtos que manufatura. Ademais, a sentença e o acórdão recorrido partiram do pressuposto de que todas as pessoas jurídicas são submetidas às regras consumeristas, razão pela qual entenderam ser abusiva a cláusula contratual que estipula o consumo mínimo, nada mencionando acerca de eventual vulnerabilidade – técnica, jurídica, fática, econômica ou informacional. O art. 2º do CDC abarca expressamente a possibilidade de as pessoas jurídicas figurarem como consumidores, sendo relevante saber se a pessoa – física ou jurídica – é “destinatária final” do produto ou serviço. Nesse passo, somente se desnatura a relação consumerista se o bem ou serviço passam a integrar a cadeia produtiva do adquirente, ou seja, tornam-se objeto de revenda ou de transformação por meio de beneficiamento ou montagem, ou, ainda, quando demonstrada sua vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica frente à outra parte, situação que não se aplica à recorrida. Diante dessa e de outras considerações, a Turma deu provimento ao recurso para reconhecer a não incidência das regras consumeristas, determinando o retorno dos autos ao tribunal de apelação, para que outro julgamento seja proferido. REsp 932.557-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 7/2/2012.
Comentários
É correto afirmar que o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) se aplica ao consumidor que seja pessoa jurídica. Isto está expresso no art. 2º, caput, do estatuto consumerista, que tem a seguinte redação:
Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Contudo, para que haja o correto enquadramento de uma pessoa jurídica como apta a receber a proteção doCDC, o aplicador do direito deve analisar três elementos que compõem a regra em comento: o primeiro é de ordem subjetiva, de forma a identificar o sujeito da relação; o segundo, de caráter objetivo, se relaciona à atividade desempenhada pelo sujeito; o terceiro é de ordem teleológica ou finalística, identificando a finalidade a ser atingida pelo sujeito da relação. Essa construção é de autoria de Nelson Nery Júnior – um dos autores do Anteprojeto do CDC -. Dessa forma, ao se deparar com a redação do art. 2º do CDC, devemos nos fazer três perguntas:
1. Quem é consumidor?
2. O que faz o consumidor?
3. Para quê o consumidor faz?
A resposta a essas três indagações nos é fornecida pelo próprio artigo: consumidor é toda pessoa física ou jurídica (elemento subjetivo) que adquire ou utiliza produto ou serviço (elemento objetivo) como destinatário final (elemento teleológico ou finalístico).
Quanto aos elementos subjetivo e objetivo, não há maiores dificuldades em identificá-los. O problema reside justamente no elemento teleológico, que levou à formação de duas grandes teorias interpretativas: finalista e maximalista.
A jurisprudência dos tribunais, inclusive a do próprio STJ não é pacífica nesse sentido, revelando a dificuldade na analise fática em que duas pessoas jurídicas ocupam polos opostos numa relação negocial – uma como fornecedora e outra como consumidora.
A regra do art. 2º revela que o CDC adotou, claramente, a teoria finalista (majoritária) ao definir o consumidor como aquele que adquire bens e serviços no mercado de consumo como destinatário final. De acordo com essa teoria, o consumidor, além de destinatário final, deve ser também o destinatário econômico dos produtos e serviços, ou seja, o destinatário fático, no qual se exaurem as finalidades do produto, conferindo contornos mais precisos à expressão consumidor. O vocábulo consumo traz a idéia de esgotamento, desaparecimento, exaurimento, destruição imediata de uma substância. Exemplificando, para os finalistas será consumidor aquele que adquire gêneros alimentícios, vestuário, produtos de higiene pessoal, fornecimento de energia elétrica, água e coleta de esgoto para servir à sua residência etc., de forma a satisfazer as suas necessidades e de sua família.
Os adeptos da teoria finalista são radicais ao interpretar o conceito. Na lição de Leonardo de Medeiros Garcia, “consumidor seria o não profissional, ou seja, aquele que adquire ou utiliza produto para uso próprio ou de sua família”. Para contornar bem a questão, o autor em referência cita o irretocável ensinamento da mestra gaúcha Cláudia Lima Marques:
“(…) destinatário final é aquele destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa jurídica ou física. Logo, segundo esta interpretação teleológica não basta ser destinatário fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência, é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do profissional que o adquiriu. Nesse caso não haveria a exigida destinação final do produto ou serviço” (Cláudia Lima Marques. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 4ª edição. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2002, p. 53, apud Leonardo de Medeiros Garcia. Direito do Consumidor: código comentado e jurisprudência. 7ª ed. Rev. Amp. E atual. Niterói: Impetus, 2011, p. 13).
No campo jurisprudencial, adotando a teoria finalista, confira-se o julgado do STJ:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. SOCIEDADE EMPRESÁRIA. CONSUMIDOR. DESTINATÁRIO FINAL ECONÔMICO. NÃO OCORRÊNCIA. FORO DE ELEIÇÃO.
VALIDADE. RELAÇÃO DE CONSUMO E HIPOSSUFICIÊNCIA. NÃO CARACTERIZAÇÃO.
1 – A jurisprudência desta Corte sedimenta-se no sentido da adoção da teoria finalista ou subjetiva para fins de caracterização da pessoa jurídica como consumidora em eventual relação de consumo, devendo, portanto, ser destinatária final econômica do bem ou serviço adquirido (REsp 541.867/BA).
2 – Para que o consumidor seja considerado destinatário econômico final, o produto ou serviço adquirido ou utilizado não pode guardar qualquer conexão, direta ou indireta, com a atividade econômica por ele desenvolvida; o produto ou serviço deve ser utilizado para o atendimento de uma necessidade própria, pessoal do consumidor.
3 – No caso em tela, não se verifica tal circunstância, porquanto o serviço de crédito tomado pela pessoa jurídica junto à instituição financeira de certo foi utilizado para o fomento da atividade empresarial, no desenvolvimento da atividade lucrativa, de forma que a sua circulação econômica não se encerra nas mãos da pessoa jurídica, sociedade empresária, motivo pelo qual não resta caracterizada, in casu, relação de consumo entre as partes.
4 – Cláusula de eleição de foro legal e válida, devendo, portanto, ser respeitada, pois não há qualquer circunstância que evidencie situação de hipossuficiência da autora da demanda que possa dificultar a propositura da ação no foro eleito.
5 – Conflito de competência conhecido para declarar competente o Juízo Federal da 12ª Vara da Seção Judiciária do Estado de São Paulo (CC 92519 / SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ. 16/02/2009).
Por sua vez, os adeptos da teoria maximalista (minoritária) admitem um conceito mais elastecido de consumidor, admitindo que seja tão somente o destinatário fático do produto ou serviço, até mesmo nos casos em que um produto ou serviço seja adquirido como insumo, incremento para a atividade profissional desempenhada por aqueles que venham simplesmente a retirar o bem de consumo da cadeia produtiva. Nesse ponto, o CDC se assemelharia ao Código de Consumo da França (Code de la Consommation), o qual tutela não somente os interesses dos consumidores, mas também os interesses dos fornecedores, isto é, tutela-se não um sujeito de direitos (consumidor), mas uma atividade (consumo).
Nesse sentido, confira-se o precedente do STJ:
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRODUTOR AGRÍCOLA. COMPRA DE SEMENTES. CDC. HIPOSSUFICIÊNCIA. DECISÃO AGRAVADA. MANUTENÇÃO.
I. O produtor agrícola que compra sementes para plantio pode ser considerado consumidor diante do abrandamento na interpretação finalista em virtude de sua vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica.
II. Agravo Regimental improvido (REsp 1200156 / RS, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJ. 28/09/2010).
Reforce-se que a jurisprudência não é pacífica sobre a caracterização da pessoa jurídica como consumidora sujeita à disciplina do CDC.
Cabe destacar que existe, ainda, uma corrente intermediária, que adota a teoria finalista mitigada, destacando a existência de bens de consumo intermediários. Segundo os adeptos dessa corrente, são bens que não têm qualquer valor econômico para o destinatário final do produto ou serviço, mas sim para o produtor e para o prestador de serviço, que são os verdadeiros consumidores desses bens, v. G., a sociedade de advogados que adquire livros para a biblioteca do escritório, o médico que adquire um estetoscópio, o dentista que adquire brocas odontológicas e estufas de esterilização etc. Ora, estetoscópios, via de regra, são usados pelos profissionais da área de saúde (médicos, enfermeiros); livros jurídicos, via de regra, são usados pelos profissionais da área jurídica; brocas odontológicas são utilizadas por dentistas. Ou seja, pode-se dizer que esses produtos possuem um público praticamente exclusivo. Como não considerá-los consumidores?! No caso desses bens, em que pese auxiliarem aquelas pessoas em sua atividade profissional, não sofrem transformações, acréscimos, manipulações etc., com vistas a serem reintegrados na cadeia de produção e circulação. Em síntese, o uso desses bens se exaure na própria atividade de quem os adquire. São, portanto, consumidos.
Em todo caso, é inafastável a ideia de que a pedra de toque das relações de consumo é a vulnerabilidade do consumidor, isto é, sua fraqueza, fragilidade diante do fornecedor, o qual detém todas as informações sobre a empresa, o que o coloca em vantagem sobre o consumidor, que na maioria das vezes, nada conhece sobre o produto ou serviço que adquire. Imagine-se uma pessoa comum, que adquire um helicóptero para uso próprio, para utilizá-lo como meio de transporte, como é o caso de muitos empresários na cidade de São Paulo, que possui uma das maiores frotas de helicóptero do mundo. Bem assim, sobrevindo um defeito no motor do aparelho, fica evidenciada a vulnerabilidade do consumidor, pois somente a fabricante da aeronave detém todas as informações sobre a respectiva mecânica, a técnica de fabricação, montagem, funcionamento, materiais utilizados, etc.
Destarte, inexistindo vulnerabilidade na relação de consumo envolvendo pessoas jurídicas, seja essa vulnerabilidade de ordem técnica, jurídica, econômica ou informativa, vigorará entre as partes as disposições do Código Civil, por se encontrarem, presumidamente, em pé de igualdade. Como se sabe, o diploma civilista rege as relações entre iguais. Sobre o tema, André Luiz Santa Cruz Ramos assevera que “no âmbito do direito empresarial, o norte interpretativo deve ser sempre, na nossa modesta opinião, a autonomia da vontade das partes. Caso contrário, o que se instaura é a insegurança jurídica, que se manifesta especificamente nas atividades econômicas como um obstáculo ao desenvolvimento” (In Direito Empresarial Esquematizado. 1ª Ed. São Paulo: Método, 2011, p. 435).
Como destacado no julgado examinado, o STJ considerou que, no caso, a parte recorrida (pessoa jurídica) não se amolda no conceito de consumidor, adotando claramente a teoria finalista para fundamentar o acórdão, pois os bens adquiridos no mercado de consumo seriam insumos, portanto destinados ao incremento da empresa, fugindo, assim, da destinação fática e econômica, necessárias para que houvesse o seu reconhecimento como consumidora.
Nada obstante, reafirmamos que o tema não é pacífico, variando bastante na jurisprudência brasileira, sendo que posicionamo-nos em sentido intermediário. Desde que identificada a vulnerabilidade da pessoa jurídica, e levando em consideração que existem determinados produtos que são verdadeiramente consumidos pelos profissionais que deles se utilizam, deverão incidir as normas do CDC, lembrando que a análise cuidadosa do caso concreto é a melhor forma de garantir a correta aplicação da norma jurídica.
Notas e Referências:
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm
GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: código comentado e jurisprudência. 7ª ed. Rev. Amp. E atual. Niterói: Impetus, 2011.
RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial Esquematizado. 1ª Ed. São Paulo: Método, 2011.
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Vitor Vilela Guglinski é Advogado. Pós-graduado com especialização em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Ex-assessor jurídico da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG). Autor colaborador dos principais periódicos jurídicos especializados do país.
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Vitor Vilela Guglinski é Advogado. Pós-graduado com especialização em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Ex-assessor jurídico da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG). Autor colaborador dos principais periódicos jurídicos especializados do país.
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Imagem Ilustrativa do Post: Doors on Life // Foto de: www.GlynLowe.com // Sem alterações
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