domingo 09 2014

Festival de Berlim começa com tom político

Cinema

Início do evento reúne filmes bons, com destaque para 'O Grande Hotel Budapeste', um dos melhores de Wes Anderson

Mariane Morisawa, de Berlim
Diretor Wes Anderson durante a apresentação do filme ‘O Grande Hotel Budapeste’, no festival de Berlim, na Alemanha
Diretor Wes Anderson durante a apresentação do filme ‘O Grande Hotel Budapeste’, no festival de Berlim, na Alemanha(Andreas Rentz/Getty Images)
Se até o filme de Wes Anderson na competição tem conotações políticas, imagine o resto. Mas no Festival de Berlim é assim mesmo: as produções de cunho político ou social dominam a briga pelo Urso de Ouro. Pelo menos, os primeiros concorrentes desta edição foram dignos e, alguns, bem interessantes mesmo – O Grande Hotel Budapeste é um dos melhores trabalhos de Anderson, o que quer dizer bastante. Mas ainda não surgiu nada que se possa chamar de arrebatador.

Tirando Wes Anderson, o melhor da primeira leva é o inglês ‘71, do estreante em longas Yann Demange. O filme volta ao auge do conflito entre católicos e protestantes em Belfast. O protagonista é Gary Hook (Jack O’Connell, uma das promessas deste ano), um garoto que, mal terminado seu treinamento como soldado, é mandado para a capital da Irlanda do Norte. Em uma batida em residências católicas, o que era para ser fácil se torna impossível diante da revolta dos moradores. Gary fica perdido em território inimigo. Demange cria uma atmosfera de terror, em que o protagonista nunca sabe de onde vem o perigo. Nas cenas da revolta popular, ele usa a câmera na mão, balançando mesmo – chega a dar náuseas, mas coloca o espectador ao lado de Gary. Também toma cuidado para não transformar nenhum dos lados em mocinho ou vilão. São ambos nebulosos. Há cenas que beiram o inverossímil (seria difícil acontecer tudo com uma mesma pessoa em uma única noite), mas o carisma do ator e a tensão sustentada por todo o filme compensam a falha.

O terceiro longa-metragem da competição foi o alemão Jack, de Edward Berger. O personagem-título é um garoto de dez anos (o ótimo Ivo Pietzcker) responsável por cuidar de si mesmo e do irmão menor, Manuel (George Arms, que parece o Pequeno Príncipe). A mãe, Sanna (Luise Heyer), é solteira e quer mais saber dos namorados do que dos filhos. Quando está com os meninos, é ótima. Mas frequentemente os deixa sozinhos. Um dia, Manuel se queima na água quente da banheira. Jack é culpado e levado para uma espécie de reformatório. Triste, solitário, ele acaba fazendo uma besteira e foge. Mas sua mãe não está em casa, e os dois meninos passam dias perambulando pelas ruas. Jack bebe na fonte dos irmãos Dardenne (O Garoto de Bicicleta e A Criança). É econômico e bem resolvido, mas não conta nada exatamente novo.

Já o francês Rachid Bouchareb apresentou La Voie de L’Ennemi (ou, em inglês, Two Men in Town, “Dois homens na cidade”, na tradução livre), uma coprodução entre França, Argélia, Estados Unidos e Bélgica baseada num thriller de 1973 do roteirista e diretor francês José Giovanni. A história foi transposta para os EUA, mais precisamente para o Novo México. William Garnett (Forest Whitaker) acaba de sair em condicional, depois de 18 anos preso pelo assassinato de um policial. Na cidadezinha em que se passa o filme, ele recebe ajuda de uma nova agente que acompanha a sua condicional (Brenda Blethyn). Mas a sua segunda chance vai ser atrapalhada pelo xerife (Harvey Keitel), incapaz de perdoá-lo pela morte do colega, embora sinta compaixão pelos mexicanos que atravessam a fronteira, e ainda vai ser pressionado pelo amigo Terence (Luis Guzmán) a voltar para o crime.

Bouchareb captura o clima tenso na região de fronteira dos Estados Unidos com o México e discute com competência o sistema prisional americano e a real possibilidade de um criminoso se regenerar, mas também não é “o” filme da competição.

O segundo concorrente da casa, Die Geliebten Schwestern (As irmãs amadas, em tradução literal), volta de Dominik Graf à direção de longas após oito anos, conta uma história de amor entre as irmãs Charlotte von Lengefeld (Henriette Confurius) e Caroline von Beulwitz (Hannah Herzprung) e entre as duas e o poeta Friedrich Schiller (Florian Stetter), um dos maiores da língua alemã no século XVIII. As duas faziam parte da aristocracia turíngia (com capital em Weimar), mas ficaram sem dinheiro após a morte do pai. Caroline se casou pela fortuna do marido, mas era infeliz. As duas, que juraram dividir tudo, dividiram inclusive Schiller, que se casou com Charlotte para disfarçar o triângulo. Claro que as coisas foram azedando com o tempo. Em vez de seguir o caminho mais óbvio, de fazer uma biografia do poeta, o longa se detém nos complicados relacionamentos entre as mulheres (além das irmãs, também há a mãe das duas, Louise). E tem o mérito de mostrar um mundo em transformação, em que a aristocracia perdia força sob os ventos das revoltas pré-Revolução Francesa.

Die Geliebten Schwestern apresenta uma história bastante curiosa, mas nem sempre aseu uso aparentemente irônico dos clichês do melodrama cai bem aos olhos de quem vive no século XXI. Em alguns momentos, o espectador fica na dúvida se é uma brincadeira com o gênero ou se tudo não passa mesmo de uma novela ruim.  

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