de Nilson Perissé
Sartre também nutria restrições quanto a Freud. Para ele a psicanálise tinha limitada expressão social, características burguesas e pouco potencial para transformar o status quo. Além disso, admitir um inconsciente com poder suficiente para influenciar ou até determinar o comportamento implicaria na necessidade de repensar a liberdade do sujeito em suas escolhas, premissa cara ao existencialismo. Conforme analisa a historiadora francesa Elisabeth Roudinesco, aos olhos de Sartre “o inconsciente freudiano era um conceito inútil, por demais mecanicista e biológico”(5). A autora conta que Sartre acusava a psicanálise “de negar a dialética e desconhecer a essência da liberdade”, o que o levava a defender uma espécie de psicanálise existencial, que teria a “capacidade de abolir o inconsciente e de afirmar que nada existe antes do aparecimento original da liberdade”(6).
O filme “Freud, Além da Alma” (Freud: the Secret Passion), de 1962, é uma experiência cinematográfica intensa, e ainda hoje uma referência em festivais de cinema que celebram a psicanálise. Não tão bem conhecidos são os bastidores da produção e as soluções encontradas para sintetizar em pouco mais de duas horas os primeiros tempos da descoberta freudiana. O que essa história tem a nos dizer sobre a forma como o mundo se apropria da psicanálise e faz dela uma narrativa ? Com base em elementos colhidos da autobiografia do realizador John Huston, de uma biografia do ator Montgomery Clift, de análises de Elisabeth Roudinesco e J.-B. Pontalis, entre outros, esta resenha em três partes propõe-se a refletir sobre os desafios da proposta psicanalítica e a forma como é apropriada por aqueles que dela se aproximam.
Freud no cinema americano : a peste que insiste em incomodar
Parte I - Bastidores de um encontro inusitado
Era um trio inusitado, porém não menos brilhante. Freud, médico vienense, criador da psicanálise; Sartre, filósofo francês, expoente do existencialismo; Huston, cineasta americano, diretor de filmes clássicos de aventura. Esse encontro improvável teve inicio no final da década de 1950, quando John Huston solicitou a Jean-Paul Sartre um roteiro sobre a vida e obra de Sigmund Freud. Nessa ocasião, Freud já havia falecido há quase vinte anos, mas permanecia vivo - para uns, através da obra; para outros, através do mito. Huston, famoso realizador de clássicos como “O Falcão Maltês” (The Maltese Falcon, 1941), “O Tesouro de Sierra Madre” (The Treasure of the Sierra Madre, 1948) e “Uma Aventura na África” (The African Queen, 1951), fazia parte deste último grupo. Ele olhava a vida de Freud através do mito, e isso significava para ele um potencial roteiro de aventura. Afinal, o percurso de idas e vindas, de erros e acertos da descoberta freudiana não se assemelhava a uma trama investigativa ou, no limite, a uma boa história de suspense pedindo para ser filmada? Ele já vinha pensando nessa perspectiva há muitos anos. Em sua autobiografia conta que, desde 1940, já discutia essa perspectiva com o produtor e roteirista alemão Wolfgang Reinhardt, embora só viesse a pensar seriamente na ideia quase vinte anos depois. “Chegamos à conclusão de que precisava ser algo que cheirasse a enxofre; a descida de Freud ao inconsciente teria que ser tão aterradora quanto a de Dante ao Inferno”, conta ele(2). Por outro lado, a despeito de seu entusiasmo com Freud, Huston não escondia sua incapacidade de acreditar no conceito do inconsciente. Em uma carta para Simone de Beauvoir, Sartre alega ter ouvido Huston dizer: “No meu (inconsciente) não há nada!”(3). Mais que isso: Huston tinha críticas ao tratamento psicanalítico: “O consultório de um psicanalista competente vive com as horas tomadas por pessoas entediadas e filhos problemáticos de gente rica. O preço das sessões é exorbitante e o tratamento, em geral, leva vários anos. As pessoas muito ocupadas ou ativas não têm tempo para isso e as que mais precisam de orientação psiquiátrica são exatamente as que não se podem dar ao luxo de tê-la”(4).
Sartre e Huston |
Com a restrição de ambos ao conceito de inconsciente – basilar para a psicanálise - o que fez laço entre Huston e Sartre em torno de Freud?
Huston havia dirigido em 1946 uma montagem de “Entre Quatro Paredes” do filósofo francês, e guardava a impressão de que Sartre “entendia de psicologia a fundo, conhecia intimamente a obra freudiana, que nas mãos dele receberia um tratamento objetivo e lógico”(7). Roudinesco dá um crédito a Huston por essa escolha. Segundo ela, no final dos anos 1950 a psicanálise já havia sido americanizada numa versão corrompida, adaptativa e medicalizada, sendo Hollywood, ao contrário, um reduto onde ainda se fazia crítica ao american-way-of-life. Daí, segundo ela, Huston ter optado por um Freud europeu e anti-americano e por conta disso ter escolhido a parceria com Sartre, “um homem de esquerda e um filósofo da liberdade”(8). O escritor Robert LaGuardia, que publicou uma biografia do ator Montgomery Clift (intérprete de Freud no filme) traz uma versão menos favorável ao diretor. Ele conta que Huston não sabia em que estava se envolvendo e que Sartre, ao ser convidado para a elaboração do roteiro e após as primeiras conversas com o diretor americano a respeito do projeto, ficou surpreso pelo fato de aquele não ter ideia de que o sexo era um ingrediente importante na formulação da psicanálise. Meses mais tarde, quando Huston teria acesso à primeira versão do roteiro e às cenas envolvendo homossexualismo, incesto, masturbação, prostituição e aberrações sexuais, ficaria absolutamente perplexo, pois não fazia a menor ideia do terreno onde estava começando a pisar(9).
Quanto a Sartre, que de fato conhecia melhor o trabalho de Freud (embora tivesse suas próprias objeções), que fator teria levado em consideração para aceitar os riscos daquele projeto? Ele mesmo admite: o interesse financeiro. Roudinesco reproduz os argumentos que ele utilizou ao ser questionado se alguma vez havia escrito algo por dinheiro: “Foi o roteiro sobre Freud que escrevi para Huston. Eu acabara de me dar conta de que não tinha mais dinheiro. Acho que foi quando minha mãe havia me dado doze milhões de francos antigos para pagar minhas dívidas. Elas foram pagas, e eu não tinha mais dívidas, mas acho que não tinha mais um tostão. Justamente quando eu soube que Huston queria me ver. Ele chegou uma manhã e disse ‘Eu estou oferecendo a você 25 milhões para colaborar num filme sobre Freud’. Eu disse sim e consegui os 25 milhões”(10).
O que teria dito Freud sobre um projeto construído por realizadores com interesses tão ambíguos? Talvez repetisse argumentos que deixou registrados ao longo de seus escritos. Em uma de suas cartas, ele opinava: “Ninguém pode se fazer biógrafo sem se comprometer com a mentira, a dissimulação, a hipocrisia, a bajulação, sem contar a obrigação de mascarar a própria incompreensão. A verdade biográfica é inacessível. Ainda que pudesse ser atingida, não poderia ser declarada”(11). Em seu “Estudo Autobiográfico”, de 1925, insistirá: “O público não tem o direito de saber mais sobre meus assuntos pessoais – minhas lutas, meus desapontamentos e meus êxitos”(12). Talvez por isso Anna Freud, associada aos pensamentos do pai, tenha sido, desde o início, contrária à realização do projeto que, ainda assim, caminhou.
O ano de 1958 mostrou-se propício para colher material biográfico sobre o pai da psicanálise: Jean-Bertrand Pontalis, que dedicou um artigo aos bastidores do filme de Huston(13), conta que nessa ocasião fora publicado em francês o primeiro volume com a biografia oficial de Freud escrita por Ernest Jones. Dois anos antes, já era de conhecimento público parte da correspondência trocada com Wilhelm Fliess, trazendo à tona um Freud íntimo até então jamais visto (o conjunto dessas informações inéditas constituiria o que seria jocosamente considerado o “making-of” da psicanálise). Com base nesse material, o esforço inicial de Sartre gerou uma sinopse de 95 páginas, rapidamente aprovada por Huston. O desenvolvimento dessas ideias se transformaria num roteiro que viria à luz no ano seguinte e, com ele, as insuperáveis divergências com o cineasta americano.
Era um roteiro de 300 páginas e, conforme as palavras de Huston, “da largura de minha coxa”(14). Se filmado na íntegra, geraria um filme de aproximadamente cinco horas. Além disso, o conteúdo inflamável repleto de temas arriscados para a censura moralista americana do início da década de 1960 ameaçaria o financiamento da produção pela Universal. Naquela época, sem o selo de aprovação da censura, seria quase impensável uma distribuição ampla em território americano. Huston não titubeou: escreveu a Sartre sobre a necessidade de burilar o conteúdo e reduzi-lo, e a resposta que recebeu foi irônica: “Pode-se fazer um filme de quatro horas quando se trata de Ben Hur, mas o público do Texas não suportaria quatro horas de complexos”(15).
A reação de Sartre demonstrava uma indignação que não deve ter sido compreendida por Huston, embora uma leitura atenta do roteiro inicial já indicasse suas razões. Está tudo ali: uma história construída com muitas nuances, ganchos claros costurando as cenas, soluções criativas para narrar uma aventura subjetiva e, subjacente a tudo isso, uma dedicação de seu autor que se justifica exclusivamente pela hipótese de que Sartre se apaixonara pela história que se propusera a contar. Se o dinheiro havia sido a matriz original de sua decisão, é certo que ele se empolgou pelo projeto e conseguiu reproduzir um Freud vivo e ambíguo, cheio de falhas, ambições e genialidade. Tudo no roteiro é de grande delicadeza e apuro: as relações familiares bastante presentes nas duas primeiras partes da narrativa, a forma como descreveu Martha Bernays – inteligente, apaixonada e cheia de matizes -, as falas apuradas e elegantes de Meynert, os traços precisos com que pintou Fliess e Breuer – tudo evidencia uma pesquisa apurada e elaborações sofisticadas.
Huston talvez não tenha entendido, mas ainda assim, farejando encrenca, convidou Sartre para passar duas semanas do mês de janeiro de 1960(16)em sua casa, na Irlanda, onde fariam reuniões diárias para o aprimoramento do roteiro. Aparentemente, a julgar pelos testemunhos de ambos - posteriormente divulgados na imprensa, na correspondência entre Sartre e Simone de Beauvoir e na autobiografia de Huston -, haviam barreiras culturais intransponíveis: Sartre reagia a cada proposta de mudança de seu roteiro utilizando-se de argumentos inesgotáveis que irritavam Huston; vestia-se de forma impecável com seu terno cinza e não saía da formalidade. Huston, por sua vez, cansou-se facilmente da verborragia de Sartre, era econômico em suas argumentações, tinha uma perspectiva influenciada pelas demandas da indústria de cinema e, num momento de descontração, tentou mostrar a Sartre – sem sucesso – que poderia hipnotizá-lo. Esse e outros comportamentos eram vistos por Sartre com desprezo: “literalmente incapaz de conversar com aqueles que convidou”, escreveu ele sobre Huston, acrescentando ainda: “ele é vazio, exceto em seus momentos de vaidade infantil” (17). Huston, de sua parte, também via Sartre como alguém, no mínimo, pitoresco, o que teria aumentado o curto-circuito já presente na explosiva relação. Para Elizabeth Roudinesco, o encontro transformou-se num pugilismo intelectual: “incapazes de um entendimento ou respeito mútuo, os dois homens, tão parecidos e tão diferentes, tentaram dominar um ao outro, até que veio à luz o produto final do mal-entendido: um roteiro soberbo mas infilmável, e o fascinante fracasso de um filme” (18).
Sem acordos ou consensos claros, Sartre voltou a Paris com o compromisso de eliminar do roteiro algumas partes sinalizadas por Huston. Mas quando, por fim, chegou à versão final, encaminhou para os Estados Unidos um roteiro com 700 páginas, mais que o dobro da versão anterior.
Foi a gota final. Huston decidiu colocar as próprias mãos sobre as elaborações de Sartre. Amparou-se com o auxílio de um roteirista profissional, Charlie Kaufman, famoso por cine-biografias, além de Reinhardt, com quem chegou a um roteiro de 190 páginas. Huston conta que parte do trabalho de revisão implicou em reduzir as conotações sexuais do roteiro de Sartre. Ele já havia recebido uma sinalização positiva quanto ao financiamento do filme, desde que fosse conseguida a aprovação da Igreja Católica: “A Igreja não podia nos impedir de levar avante o projeto, mas podia prejudicar o lançamento dos cinemas proibindo os fiéis de assistir ao filme. Me reuni com dois padres e uma mulher leiga para discutir minuciosamente o roteiro. A oposição dos três se baseava em princípios éticos: a filosofia de Freud, segundo eles, não admite a existência do Bem e do Mal. Só um padre tem o direito de sondar a alma humana. A mera sugestão de sexualidade infantil lhes repugnava. É lógico que eu não podia modificar Freud para satisfazer esses preconceitos católicos sem destruir completamente o filme – sem falar no freudianismo – e o máximo que eu podia esperar era chegar a um meio-termo” (19).
Essas concessões foram inaceitáveis para Sartre. Enfim ele caía em si que Huston não pretendia fazer um filme independente, de arte, voltado para um público erudito, mas apenas fazer cinema popular. Impaciente, ordenou que seu nome fosse tirado dos créditos do filme e abandonou o projeto. Quando Huston, incapaz de entender as reações de Sartre, pediu a Reinhardt que o procurasse em Paris em busca de uma explicação, Sartre não poupou o diretor americano de acusações e sarcasmo - sentou-se e compôs um texto de 16 páginas sobre suas motivações, acusando Huston de vender os altos ideais do projeto. Ao ler a carta, Huston supersimplificou a questão e explodiu com Reinhardt: “Por que você me traz algo como isso? Está tentando arruinar meu filme?” (20).
Foi o fim da participação de Sartre no projeto de Freud. Mas, para Huston e para o Freud ficcional que estava em jogo, os tropeços estavam ainda e apenas no começo.
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