quarta-feira 06 2013

"Em 2014, tetraplégico vai dar o pontapé inicial da Copa do Mundo usando um exoesqueleto", promete neurocientista

Neurociência

O brasileiro Miguel Nicolelis, diretor do laboratório de neuroengenharia da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, trabalha na criação de uma veste robótica para transformar sinais cerebrais em movimentos

Jones Rossi
Cientista e professor Miguel Nicolelis em seu laboratório na Duke University em Durham, Carolina do Norte
Cientista e professor Miguel Nicolelis em seu laboratório na Duke University em Durham, Carolina do Norte (Gilberto Tadday )
No mesmo dia em que o Santos venceu a Copa Libertadores, 22 de junho, o neurocientista (e palmeirense fanático) Miguel Nicolelis mostrou seus planos ambiciosos para a Copa de 2014. Diretor do laboratório de neuroengenharia da Universidade Duke, nos Estados Unidos, Nicolelis não apresentou nenhuma artimanha secreta para o Brasil conquistar o hexa. Seu projeto é mais importante: prometeu que o pontapé inicial do jogo de abertura da Copa será dado por um adolescente tetraplégico usando um exoesqueleto, uma veste robótica controlada por pensamentos. Em cima do palco no qual a Osesp costuma se apresentar, recebeu os aplausos entusiasmados da plateia que lotou a Sala São Paulo para ouvir sua palestra.
A apresentação faz parte de uma série de eventos relacionados ao lançamento do livro Muito Além do Nosso Eu – A nova neurociência que une cérebro e máquinas, e como ela pode mudar nossas vidas (552 páginas, Companhia das Letras). “Foram muitos anos de pesquisa, e o livro é uma forma de apresentar as teorias que consolidamos nesse período”, diz Nicolelis (assista à entrevista em vídeo).
Formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o cientista paulistano mudou-se para os Estados Unidos em 1989 e desde 1994 dirige o laboratório de neuroengenharia da Universidade Duke. Seu prestígio só cresceu nos últimos anos, principalmente graças às pesquisas com o que ele batizou de interfaces cérebro-máquina (ICM). “São sensores capazes de captar a atividade elétrica dos neurônios, decodificá-la, remetê-la a artefatos robóticos e depois de volta para o cérebro por meio de sinais visuais, táteis ou elétricos”, explica. 
Na prática, as ICMs transformam os pensamentos em comandos digitais que as máquinas podem entender. O exoesqueleto imaginado por Nicolelis vai funcionar dessa maneira. Chips minúsculos colocados no cérebro ou na medula do paciente vão captar os sinais gerados pelo cérebro e transformá-los em comandos como “mover o pé direito” ou “chutar a bola”. “Os quadriplégicos continuam pensando nos movimentos. Vamos transformar essa intenção elétrica em movimento”, afirma o cientista, confiante.
Jim Wallace/Duke University/AP
Cientista e professor Miguel Nicolelis (2000)
Cientista e professor Miguel Nicolelis (2000)
"Os limites do corpo são irrelevantes" — As ICMs já foram testadas no tratamento de doenças como Parkinson. No começo da pesquisa, ainda na década de 90, animais modificados geneticamente para desenvolver a doença em um estágio avançado receberam chips que faziam a estimulação elétrica do cérebro. Ao serem acionados, eles aliviavam os sintomas da doença.  Hoje, pesquisas das universidades da Califórnia e de Brown usam ICMs mais modernas em seres humanos não só para o Parkinson, mas também para controlar crises epiléticas. Segundo Nicolelis, os implantes reduziram em 80% as crises.
Mas a grande revolução que permitiu Nicolelis sonhar com o garoto de exoesqueleto na Copa do Mundo veio em 2002. Uma macaca chamada Aurora foi treinada para, usando um joystick, direcionar um cursor na tela de um monitor para dentro de um círculo. Cada vez que conseguia, era recompensada com suco de laranja. Enquanto isso, sensores registravam a atividade cerebral. Depois o joystick foi tirado, e uma ICM, implantada. A partir de então, para controlar o cursor, tudo que Aurora precisava fazer era pensar no movimento, e o sinal era enviado ao braço robótico. “Foi a primeira vez que um cérebro de primata se libertou do corpo”, diz Nicolelis.
Experiências mais sofisticadas foram realizadas em seguida, como adicionar mais um braço robótico para Aurora controlar. Com o teste, veio a descoberta de que alguns neurônios só entram em ação justamente quando a prótese é utilizada, como se o cérebro já tivesse nascido evoluído para usar essas ferramentas. "Os limites do corpo são irrelevantes", diz.

'Brainet'

Em breve, Nicolelis e sua equipe na Universidade de Duke deverão apresentar à comunidade científica sua mais nova criação: uma interface cérebro-máquina wireless, embrião do que Nicolelis chama brainet, uma espécie de internet controlada por pensamento. Nessa versão idealizada pelo cientista, nossa atividade elétrica cerebral viajaria pelo ar como ondas de rádio. “Imagine viver num mundo em que as pessoas usam computadores, dirigem carros e se comunicam simplesmente por meio do pensamento.” A criação da brainetatualmente, no entanto, é impossível. As ICMs atuais não conseguem captar os sinais de mais de mil neurônios ao mesmo tempo e perdem a eficácia após algum tempo, devido ao desgaste do tecido cerebral. Nos moldes pensados por Nicolelis, a brainet dispensaria o uso de chips.

No vídeo abaixo, ele explica como funcionaria a brainet:

Avatar — Outra experiência, chamada de Macaco-Avatar (antes do filme de James Cameron ser lançado), reforçou as convicções de Nicolelis. O experimento consistia em estimular o braço real e um braço virtual, projetado em uma tela, como se fosse do próprio macaco, ao mesmo tempo. Surpresa: neurônios que só deveriam responder a estímulos táteis do próprio corpo responderam como se o braço virtual fosse parte do corpo real. Anos depois, com ICMs que captavam e mandavam mensagens de volta para o cérebro, foi criado o primeiro simulador virtual com que macacos controlavam e sentiam os movimentos de avatares.
Em janeiro de 2008, Miguel Nicolelis e Gordon Cheng, então no laboratório de neurociência computacional de Kyoto, no Japão, testaram a primeira ICM intercontinental. A macaca Idoya foi colocada sobre uma esteira. Eletrodos implantados em seu cérebro monitoravam a atividade cerebral e os dados eram transmitidos por meio de uma conexão de alta velocidade do laboratório de Nicolelis, na Carolina do Norte, até Kyoto, onde um robô usava os sinais para andar. Depois de uma hora, Idoya parou de andar, mas continuou controlando o robô com o cérebro. Foi a primeira vez que sinais cerebrais foram usados para fazer um robô andar. 
A experiência foi a embriã do Walk Again Project (Projeto Voltar a Andar). As escolas politécnicas de Munique, na Alemanha, e Lausanne, na Suíça, trabalham na construção do exoesqueleto de corpo inteiro que permitirá que a atividade cerebral seja lida, decodificada e transformada em comandos digitais. Ainda há alguns problemas a serem resolvidos, como a duração da bateria e seu tamanho. De qualquer forma, será uma veste para ser usada apenas algumas horas por dia. Mas para Nicolelis é um caminho sem volta. “Vai acontecer. É difícil, mas realizável."

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