Genética
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Trechos do DNA de populações polinésias foram encontrados no genoma preservado no crânio de índios brasileiros do século 19. Descoberta pode ajudar a compreender as ondas migratórias que povoaram a América
Guilherme Rosa
Pesquisas anteriores haviam mostrado que os índios botocudos poderiam ser descendentes de uma população diferente da maioria dos outros povos americanos (Walter Garber)
Dois crânios preservados no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro guardam um segredo que pode ajudar a explicar o povoamento de todo o continente americano. Os crânios pertenceram a índios botocudos que habitaram o Brasil durante o século XIX, mas pesquisadores encontraram, no meio do seu genoma, trechos de DNA pertencentes a populações polinésias, que habitam o sudoeste asiático. O estudo, publicado na revista PNASnesta segunda-feira, propõe alguns cenários para explicar a presença desse 'DNA estrangeiro' em índios que habitavam o interior do Brasil, o que pode ajudar a reescrever a história do continente.
CONHEÇA A PESQUISA
Título original: Identification of Polynesian mtDNA haplogroups in remains of Botocudo Amerindians from Brazil
Onde foi divulgada: periódico PNAS
Quem fez: Vanessa Faria Gonçalves, Jesper Stenderup, Cláudia Rodrigues-Carvalho, Hilton P. Silva, Higgor Gonçalves-Dornelas, Andersen Líryo, Toomas Kivisild, Anna-Sapfo Malaspinas, Paula F. Campos, Morten Rasmussen, Eske Willerslev e Sérgio Danilo J. Pena
Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais
Dados de amostragem: Dois crânios de índios botocudos mortos no século XIX
Resultado: Os pesquisadores descobriram no genoma preservado nesses crânios alguns trechos de DNA pertencentes a populações que habitam a Polinésia, nos sudeste asiático. Os testes genéticos foram realizados em dois laboratórios diferentes, no Brasil e na Dinamarca, para garantir a confirmação dos dados.
Desde o início do século 19, os cientistas se dividem na hora de explicar o povoamento da América. Existe um relativo consenso de que os primeiros habitantes chegaram ao continente entre 15.000 e 20.000 anos atrás, provavelmente pelo Estreito de Bering, entre o Alasca e a Sibéria. Os pesquisadores não concordam, no entanto, sobre o que aconteceu após essa primeira onda migratória. Uma hipótese, feita a partir de análises genéticas das populações indígenas do continente, defende que todos os habitantes são descendentes de uma única população vinda da Sibéria, responsável por povoar todo o continente.
Uma outra hipótese, desenvolvida por meio da análise dos crânios de populações atuais e antigas, afirma que o continente foi povoado a partir de duas populações diferentes. Uma delas possuía características mongoloides, mais semelhantes aos habitantes de nordeste asiático, com crânios largos e achatados. A outra população, chamada de paleoíndia, apresentava crânios estreitos e alongados, semelhantes aos de alguns povos africanos, australianos e melanésios. "A morfologia mongoloide é vista na grande maioria dos ameríndios atuais, enquanto os representantes mais famosos da morfologia paleoíndia são os esqueletos muito antigos encontrados na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais", diz Sérgio Pena, geneticista da Universidade Federal de Minas Gerais responsável pela pesquisa.
Não existia, no entanto, nenhuma evidência genética de que a América teria sido povoada por duas populações diferentes. Nesse contexto, os índios botocudos se tornam importantes. Pesquisas conduzidas pelo biólogo e arqueólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo, mostram que o crânio desses índios possuíam um formato intermediário entre a morfologia paleoíndia e mongoloide. "Com base nisso, alguns pesquisadores chegaram a propor que os botocudos seriam descendentes dos paleoíndios de Lagoa Santa, mas isso não é aceito por todos", diz Sérgio Pena. Uma análise genética dessa população poderia ajudar a pôr um ponto final nessas questões. No entanto, os botocudos foram praticamente eliminados e quase não são mais encontrados no país.
Extinção — Também conhecidos como aimorés, os índios botocudos habitaram os estados de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia até a chegada dos portugueses. Caçadores-coletores, eles eram conhecidos por serem mais violentos que os tupis — viviam em guerra com outras tribos e entre si. Usavam ornamentos redondos em seus lábios e orelhas, chamados de botoques pelos colonizadores portugueses.
A partir de 1808, Portugal declarou guerra aos índios que não aceitassem suas leis. Os botocudos, mais arredios e agressivos, foram vítimas preferenciais desse tipo de ataque. O massacre foi imenso e, em menos de um século, eles foram praticamente extintos de todo o território brasileiro. O fio genético que poderia ligar as populações polinésias aos habitantes americanos poderia estar perdido para sempre, não fosse uma coleção de crânios de índios botocudos mantida pelo Museu Nacional desde o século XIX.
Ao analisar o genoma preservado em 14 desses crânios, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais encontraram, em dois deles, trechos de DNA polinésio. Os trechos estavam em meio ao DNA mitocondrial, que é transmitido de mãe para filhos, e indicavam que, em algum momento no passado, populações estrangeiras haviam cruzado com os antecedentes desses índios. A descoberta, no entanto, está longe de dar qualquer resposta sobre a origem americana.
Saiba mais
DNA MITOCONDRIAL
O DNA mitondrial não se encontra no núcleo da célula, mas dentro da mitocôndria. Segundo Sérgio Pena, ele é ideal para o estudo de arqueologia molecular, especialmente por ser naturalmente amplificado, ou seja, apresentar centenas ou milhares de cópias em uma única célula. "O DNA mitocondrial é sempre materno. Se você tem uma população que é conquistada à força por outra, parece ser um padrão constante que os homens invasores se reproduzem com as mulheres invadidas e assimilam as crianças em seu grupo. Assim, há sempre uma transferência de DNA mitocondrial da população dominada para a dominante. Por exemplo, mostramos há alguns anos que na população brasileira autodenominada branca, a maioria do DNA mitocondrial é de origem ameríndia e africana, enquanto a vasta maioria do DNA de cromossomos Y é de origem europeia", diz Pena.
O DNA mitondrial não se encontra no núcleo da célula, mas dentro da mitocôndria. Segundo Sérgio Pena, ele é ideal para o estudo de arqueologia molecular, especialmente por ser naturalmente amplificado, ou seja, apresentar centenas ou milhares de cópias em uma única célula. "O DNA mitocondrial é sempre materno. Se você tem uma população que é conquistada à força por outra, parece ser um padrão constante que os homens invasores se reproduzem com as mulheres invadidas e assimilam as crianças em seu grupo. Assim, há sempre uma transferência de DNA mitocondrial da população dominada para a dominante. Por exemplo, mostramos há alguns anos que na população brasileira autodenominada branca, a maioria do DNA mitocondrial é de origem ameríndia e africana, enquanto a vasta maioria do DNA de cromossomos Y é de origem europeia", diz Pena.
Mais trabalho - Para explicar a presença desse DNA estrangeiro, os pesquisadores traçaram quatro cenários. Um deles é justamente a hipótese que levou ao estudo, que afirma que os índios botocudos seriam descendentes das populações de Lagoa Santa. Para esse cenário ser aceito, no entanto, ele precisaria estar de acordo com o que se conhece da cronologia de povoação da Polinésia, o que não é o caso. "As populações polinésias são muito jovens — têm de 3.000 a 5.000 anos —, enquanto os ameríndios chegaram às Américas de 15.000 a 20.000 anos atrás. O nosso cenário propõe que é possível, embora não provável, que ancestrais dos atuais polinésios possam ter tido contato com ancestrais dos botocudos ainda na Ásia", diz Sérgio Pena.
Outra hipótese levantada pelos pesquisadores afirma que os polinésios poderiam ter chegado à América mais recentemente, mas ainda antes dos europeus. Nesse caso, os pesquisadores dizem que esses povoadores teriam pouco tempo para atravessar a Cordilheira dos Andes, que separa a o Oceano Pacífico do interior do Brasil e, por isso, afirmam que o cenário é pouco provável.
As outras duas possibilidades desenhadas pelos pesquisadores já teriam acontecido após a chegadas dos colonizadores europeus. Em 1860, cerca de 2.000 polinésios foram transportados como escravos até o Peru. Cerca de 36 anos depois, após o fim da escravidão no país, os 300 escravos que ainda estavam vivos foram enviados de volta à sua terra. A hipótese, pouco provável, é que algum deles tenha se refugiado no Brasil. Não existem, no entanto, evidências de que isso tenha acontecido.
O último cenário, considerado o mais provável pelos pesquisadores, descreve o transporte desse DNA até o interior do Brasil por escravos africanos ainda no século XIX. Durante boa parte desse século, a Inglaterra havia proibido a venda de escravos, impedindo seus navios de participar desse tipo de comércio e capturando embarcações alheias que o fizessem. Para driblar a patrulha inglesa, os navios brasileiros passaram a trocar os escravos no oeste africano, que podia ser atingido ao se navegar pelo sul do Atlântico. Assim, Moçambique se tornou um entreposto importante para esse tipo de comércio, e os escravos passaram a vir de suas vizinhanças. "Cerca de 20% dos nativos de Madagascar, uma ilha próxima a Moçambique, apresentam DNA mitocondrial com as características dos polinésios. Essa hipótese é testável experimentalmente e será a primeira a ter nossa atenção", diz Sérgio Pena.
A descoberta de trechos de DNA polinésio no genoma de índios brasileiros não respondeu a muitas perguntas, mas levantou uma série de novas questões. Agora, os pesquisadores pretendem continuar as pesquisas para descobrir qual dos cenários é o verdadeiro. Assim, poderão responder se esses trechos de DNA só chegaram ao Brasil recentemente ou se são uma herança ancestral, dos primeiros dias de habitação do continente.
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