ANDREI NETTO , ENVIADO ESPECIAL / LENS - O Estado de S.Paulo
O trem-bala que se dirige ao extremo norte da França não permanecerá na estação mais do que três minutos. Mas este município de 35 mil habitantes e pouca importância política e econômica, encravado a alguns minutos da fronteira com a Bélgica, entrou no mapa-múndi das artes e da cultura. Antiga jazida da exploração de minérios, Lens sobreviveu por décadas da extração de carvão. Agora, esse centro operário pretende viver de um diamante: o Louvre-Lens - a primeira filial do museu mais famoso do mundo.
Quando da inauguração da pirâmide de vidro em meio ao Palácio do Louvre, em 1989, o projeto do arquiteto sino-americano Ieoh Ming Pei foi muito criticado pelos franceses mais puristas. Vinte e três anos depois, o governo francês voltou a desafiar os críticos - agora raros, é verdade - com a abertura de uma filial da célebre instituição parisiense, patrimônio cultural da humanidade.
O resultado é o melhor possível. Desde a inauguração, em dezembro, mais de 180 mil visitantes circularam pelas instalações, o que significa quase 40% da previsão para o ano todo. "Nosso objetivo é fazer o Louvre-Lens tornar-se uma referência cultural nacional e internacional", explicou seu diretor, Xavier Decto, ao Estado.
Desenhado pela agência japonesa Sanaa, o Louvre-Lens é um fascinante monumento de vidro e metal, materiais que refletem o céu acinzentado da região, assumindo uma tonalidade prateada e reluzente - como uma joia. Composto por cinco caixas retangulares de vidro, que se comunicam, o prédio de 360 m de comprimento e 28 mil m² de área construída pode ser interpretado como referência da arquitetura pós-moderna ao renascimento francês do século 16, que emprestou formas ao Louvre de Paris.
Mas não bastariam remissões arquitetônicas para sustentar a comparação. Também seria preciso acervo - e para formá-lo o Louvre-Lens tem a quem recorrer. Com mais de 900 obras, 250 por galeria, 70 por pavilhão e 200 em exposições temporárias, o museu é testemunha ao mesmo tempo da magnitude do Louvre e da ousadia do Studio Adrien Gardère, que assina seu projeto museográfico. Foi desse escritório a ideia de transformar o maior galpão na Galeria do Tempo, o principal destaque do prédio.
Nesse espaço, os museólogos romperam com a lógica do museu-pai, que se divide em mostras temáticas, em geral determinadas por estilos ou por civilizações. Na Galeria do Tempo estão à mostra 205 pinturas e esculturas dispostas como uma linha do tempo. Seu objetivo é sintetizar 2,5 mil anos de história da arte em um percurso multicultural em que o público encontrará obras da Grécia clássica ao lado de relíquias do Império Persa ou do Egito dos faraós, sem divisões nem fronteiras.
Essa linha do tempo é dividida em três épocas. A primeira, Antiga, tem 70 obras e 12 temas, e vai do nascimento da escrita na Mesopotâmia antiga ao Império Romano, passando por assírios e egípcios. Nesse trecho, é possível deparar com obras como Ídolo Feminino Nu com Braços Cruzados, escultura grega de mármore que data de 2700 a 2300 antes de Cristo, ou A Senhora Touy, superiora do harém do deus Min, que data do período do faraó Amenophis III, em torno de 1390 a.C.
A seguir, na segunda época, vem a Idade Média, representada por 45 obras e sete temas, como as origens da civilização muçulmana, a Europa gótica e o apogeu da arte islâmica. O caminho acaba com 90 trabalhos e nove temas da era Tempos Modernos, que traz desde pinturas como Saint Sébastien, do renascentista Pietro di Cristoforo (1450- 1523), até o apogeu da exposição, a célebre e fascinante La Liberté Guidant le Peuple, tela romântica - ligeiramente danificada por uma mulher no dia 7 - que Eugène Delacroix legou à humanidade em 1830. Não por acaso o visitante que encerrar o percurso do novo Louvre-Lens vai se deparar com um clássico que enaltece a fundação da França contemporânea.
A linha do tempo pode ser encarada pelos mais exigentes como um resumo superficial demais da história da arte, mas a exposição é uma verdadeira demonstração de força do Louvre, que em Lens apresenta somente uma pequena parte de seu poderio. Afinal, um museu com um acervo de 460 mil obras pode dar-se ao luxo de, como afirmou sua direção quando da inauguração de sua filial, lançar "uma nova compreensão da história da arte e da humanidade".
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