Artigo
O critério racial fere a isonomia. Que os militantes da causa negra não se iludam: projeto das cotas não passa de cortina de fumaça
Gustavo Ioschpe
O ERRO DAS FEDERAIS - Primeiro eles avacalham as próprias instituições, depois reclamam quando os outros querem fazer demagogia com elas (André Dusek/AE)
Não fosse o componente racial no projeto de lei aprovado pelo Congresso - que destina 50% das vagas das universidades federais a alunos que cursaram o ensino médio em escolas públicas, a ser distribuídas respeitando a divisão racial de cada estado -, eu poderia dar-lhe o benefício da dúvida. Com o componente racial, sou contra
A família do meu pai chegou ao Brasil, com uma mão na frente e outra atrás, no começo do século XX. A da minha mãe aportou aqui fugindo do nazismo. Em ambos os casos, portanto, muito depois da abolição da escravidão. Caso a lei das cotas raciais e econômicas nas universidades federais seja sancionada, fico imaginando o que eu - e milhões de brasileiros com histórico parecido - diria ao meu filho se ele fosse excluído de uma vaga em universidade federal em benefício de um negro ou indígena com pior desempenho acadêmico. Não haveria o que dizer. Pessoalmente, acredito que o critério racial fere a isonomia, que é a base da democracia, e tisna o republicanismo com sectarismo. Racismo sempre é ruim, tanto o movido por ódios quanto o por intenções nobres. Espero que os militantes da causa negra não se iludam: esse projeto não é uma grande vitória, mas uma cortina de fumaça. Em primeiro lugar, porque o racismo brasileiro não é causado por políticas governamentais que precisam ser revertidas, como era o caso americano, mas sim por atitudes de foro íntimo de uma parte dos nossos concidadãos. A concessão de cotas não mudará esse preconceito e corre-se o risco de exacerbá-lo. E, segundo e mais importante, porque o efeito dessa lei não passa de migalha. Reportagem da Folha de S.Paulo calculou que o número de vagas reservadas nas universidades federais aumentaria em 70 000 com as cotas. A maneira de tirar milhões de negros da privação é melhorando a qualidade do ensino básico.
Não fosse o componente racial no projeto de lei aprovado pelo Congresso - que destina 50% das vagas das universidades federais a alunos que cursaram o ensino médio em escolas públicas, a ser distribuídas respeitando a divisão racial de cada estado -, eu poderia dar-lhe o benefício da dúvida. Com o componente racial, sou contra.
Há bons argumentos favoráveis e bons argumentos contrários à concessão de cotas a alunos da rede pública de ensino, sem discriminação por raça. Os favoráveis: a medida aumenta o acesso de alunos de baixa renda à universidade, promovendo equidade social. Também pode fazer com que pais da classe média baixa tirem seus filhos de escolas particulares e os matriculem em escolas públicas. A pesquisa sugere que esse público de maior renda e instrução deverá gerar melhoria de qualidade na escola pública. Os argumentos contrários: além de ferir a meritocracia, o que conceitualmente é lamentável para uma instituição de ensino, a chegada de alunos despreparados às universidades federais poderia ameaçar sua qualidade, acabando com boa parte da pouca pesquisa que o país produz.
O tempo dirá se os efeitos negativos vencerão os positivos. É uma questão mais empírica do que opiniática. Se essa lei for mais um prego no caixão das universidades federais, é importante notar que o eventual óbito terá sido caso de suicídio assistido, não assassinato. Agora reitores e professores protestam contra essa lei específica, mas as sementes do mal foram plantadas por eles. Porque nas últimas décadas as universidades federais se protegeram tanto, amealharam tanto dinheiro dando tão pouco em troca à sociedade, que hoje não têm mais autoridade para esperar que essa sociedade as proteja.
A marcha da insensatez começou com o artigo 207 da Constituição, que declara a “indissociabilidade entre ensino e pesquisa” nas universidades. Já seria estranho ter uma lei qualquer defendendo que o separável é, em realidade, inseparável, mas consagrar isso na Constituição do país é estapafúrdio. O resultado prático dessa lei é que 90% dos professores das federais são remunerados como se fossem pesquisadores em tempo integral, o que a grande maioria não é. Se quase todos são tratados assim sem que precisem produzir pesquisa, obviamente há pouco incentivo para que se faça pesquisa de ponta. A maioria dessas instituições é pouco produtiva. No ranking mundial de universidades do Times londrino, não há nenhuma universidade federal entre as 400 melhores do mundo. Ainda há grandes professores e pesquisadores, mas as universidades federais exigem que toda a rede seja tratada de forma homogênea, gerando dupla injustiça: não valoriza os que merecem e sobrevaloriza os que nada ou pouco produzem. Esses últimos ainda fazem greves, como a de agora. Essa estrutura torna o custo das universidades federais estratosférico: seu aluno custa quase seis vezes mais do que o aluno do ensino fundamental, o mais caro entre todos os países medidos. Finalmente, as federais resistiram e continuam resistindo a planos de expansão de vagas. Fazer universidades novas em zonas desprestigiadas pode, mas aumentar agressivamente o número de alunos nas universidades “nobres”, isso não. Assim, o orçamento do Ministério da Educação destina 23,7 bilhões de reais às federais e elas matriculam apenas 763 000 alunos, menos de 15% das matrículas totais do setor. Se a instituição das cotas tiver efeito adverso sobre a qualidade das federais, é provável que haja mais um êxodo de matrículas para o setor privado, fomentando o desenvolvimento de instituições de ponta nesse setor. Daqui a um tempo, não será surpreendente se alguém sugerir extinguir as federais e transferir todo o seu orçamento para boas universidades privadas ou estaduais. Todas as leis e manobras que deveriam garantir a opulência e complacência das universidades federais terão causado sua implosão.
Na escola, havia um colega que não conseguia acompanhar o ritmo na maioria das matérias e era vítima de gozação da turma. Um dia, ao receber mais uma provocação de outro colega que tampouco era grande aluno, ele se revoltou: “Tu, não! Vai descolorir o boletim antes de abrir a boca”. O Ideb, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, que dá uma nota de zero a 10 para a qualidade de todas as escolas públicas do Brasil, mostra que o boletim do país é um mar de notas vermelhas.
O Ministério da Educação, ao divulgar os resultados, enfatiza o (pequeno) progresso e o fato de 77% dos municípios terem atingido a meta. A verdade é que não há razão para contentamento. A média cai de 5,0 no 5º ano para 3,7 ao fim do ensino médio. Quanto mais tempo nosso aluno permanece na escola, pior é o seu desempenho. As metas do Ministério da Educação são ridículas, mais uma herança maldita do preclaro Haddad. Estipulam que, em 2021, o Brasil tenha o mesmo desempenho dos países da OCDE... em 2006! Isso não é meta, é uma confissão de derrota. Até 2021 esses países terão evoluído muito, e os problemas de competitividade do Brasil, causados pelo nosso apagão escolar, continuarão terríveis.
Como sabem os leitores desta coluna, só acredito que teremos mudanças significativas quando a população cobrar educação de qualidade. Políticos só atacarão o problema da educação com o devido empenho quando o mau resultado lhes custar votos. O Ideb 2011 pode ser um instrumento valioso nesse processo, porque pela primeira vez temos uma série histórica que permite avaliar o desempenho de redes municipais em um mandato inteiro de prefeitos, justamente em ano eleitoral. Para dar minha pequena colaboração, as tabelas aqui reproduzidas mostram, entre as cidades com mais de 100 000 habitantes, quais as redes municipais que mais melhoraram e as que mais pioraram no país, e também aquelas que obtiveram os melhores e os piores resultados absolutos. Em twitter.com/gioschpe você encontra os dados completos do Ideb por município, por estado e pelo país, desde 2005. Espero que ajude na hora de votar para prefeito.
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/para-combater-a-desigualdade-o-caminho-e-a-educacao-basica
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