Oxford Street, Londres. Foto: M.Calliari
Hoje foi publicada na
Folha uma interessante entrevista com Washington Olivetto, um dos maiores
publicitários brasileiros. Ele está morando em Londres e conta que está
adorando andar a pé e de metrô pela cidade: “Não tenho nenhuma vontade de
comprar carro aqui. E olha que gosto de carros velozes. Tenho andado muito de
metrô, ônibus e a pé. Volto da agência todos os dias a pé, uma hora de
caminhada”.
Nessa época de
férias, é comum encontrarmos pessoas que dizem ter adorado andar em cidades
fora do Brasil, apesar de nunca fazerem isso por aqui. Seja em Nova York,
Paris, Londres ou Buenos Aires, os brasileiros que viajam se encantam com o
prazer de andar a pé: as calçadas lisas, a limpeza, a segurança, as pessoas, as
lojas e as surpresas que as grandes cidades escondem.
Os relatos das
viagens no Facebook, no Instagram são eloquentes: “andamos trinta quarteirões a
10 graus negativos em Nova York” ou “delícia passear por essa cidade tão
limpinha e parar num café na calçada”.
Sinalização de rua
em Londres. Foto: M.Calliari
Essa é uma questão intrigante: as pessoas adoram
andar a pé. Mas não em São Paulo.
O fato é que nós já
vivemos numa cidade onde a maior parte das pessoas faz suas coisas a pé e não
nos damos conta disso. Sim, o percentual de pessoas que andam a pé em São
Paulo é maior do que em Londres, ou Nova York ou Paris.
Em São Paulo, não
custa lembrar, mais de um terço dos deslocamentos diários são feitos a pé – são
crianças que andam até a escola, adultos que fazem compras, gente que vai
trabalhar a pé. Outro terço dos deslocamentos envolve algum tipo de caminhada,
até o ponto de ônibus ou o trem, por exemplo. No mínimo dois terços de todos os
deslocamentos cotidianos da cidade são feitos a pé, muito mais do que nessas
outras cidades.
Ou seja, nós já moramos numa cidade em que as
pessoas andam a pé. Somos milhões de pedestres e não
valorizamos isso.
Comparadas a outras
grandes cidades globais, São Paulo não é, de fato, uma cidade fácil: as ruas
muitas vezes não são nada atraentes, as calçadas têm buracos, e as travessias
são perigosas, mas, principalmente nas áreas centrais (de onde saem grande parte
de nossos turistas que viajam para fora), é possível encontrar lugares
agradáveis, em que o deslocamento entre o ponto A e B pode ser feito com
prazer.
Há ruas com árvores
que dão boa sombra, há ruas seguras, há lojinhas simpáticas em qualquer lugar e
há sempre alguma coisa acontecendo que pode nos interessar. Há, mais que tudo,
milhões de pessoas andando para cá e para lá.
Mas há uma
assimetria: o tempo médio de deslocamento a pé é de 15 minutos para quem ganha
mais de 15 salários mínimos e 32 minutos para os que ganhame um e dois
salários, como mostra estudo da estatística Glaucia Guimarães Pereira, feito
para esse blog, a partir da pesquisa OD.
O que isso quer dizer? Que os mais ricos andam a
metade do que os mais pobres.
Parece normal e até
razoável. Mas talvez não seja. Afinal, as pessoas mais ricas tendem a morar em
áreas mais centrais, mais bem servidas por metrô, mais confortáveis de andar a
pé, muitas vezes razoavelmente perto de seus empregos. Afinal, em uma hora de
caminhada, conseguimos fazer uns quatro quilômetros sem muito esforço.
Então, por que os mais ricos não andam mais que as
mais pobres e não menos?
Acho que a primeira razão é o preconceito contra o transporte público. Muitas pessoas dizem que o transporte é ruim e às
vezes é mesmo, mas uma pesquisa do Nossa São Paulo mostrou que a avaliação sobre os ônibus piora entre os que nunca
andaram de ônibus. Você já deve ter
ouvido isso: “quando o transporte melhorar, eu ando de ônibus”, mas o que muita
gente está dizendo é: “eu não vou andar de ônibus nunca, e não vou nem testar”.
O prefeito de Bogotá,
Enrique Peñalosa, famoso por promover uma pequena revolução nos hábitos de
deslocamento de sua cidade, disse uma vez uma frase: “a boa cidade não é aquela
onde todos têm um carro, mas aquela onde quem tem um carro prefere andar de
ônibus”.
Ora, em São Paulo, já
existem ônibus com ar condicionado e que fazem pouco barulho interno (aqueles
bi-articulados que andam nos corredores) e grande parte dos vagões do metrô já
tem ar condicionado e são confortáveis fora do horário de pico. Ainda é pouco e
tudo isso precisa ser estendido à frota toda e às estações, que ainda são muito
desconfortáveis.
A questão é que quem
não usa, não reclama, e sem reclamação e participação, a maior licitação de
ônibus no mundo, que está em curso em São Paulo, corre o risco de dar pouco
peso à satisfação dos usuários, apesar disso constar do texto legal. Quem está
acostumado a serviços de primeiro mundo poderia e deveria dar palpites no nosso
transporte para ajudá-lo a mirar na qualidade de primeiro mundo.
Outra razão para andarmos menos: “no Brasil, falta
segurança”. Sim, é verdade, falta mesmo. Mas
andar de carro talvez não seja muito mais seguro do que andar a pé ou de
transporte público e a segurança aumenta quando há mais pessoas nas ruas.
A questão, portanto, parece ser cultural. Quem tem
dinheiro, vai de carro.
Andar a pé sempre foi visto como algo relegado a
quem não conseguia comprar seu carro, daí até o sentido da palavra “pedestre” –
rasteiro, desimportante. Nós nos acostumamos a ver pessoas chegando de carro
num restaurante e sendo recebidas por um valet na porta, como
se fosse um insulto ter que andar alguns quarteirões para parar o carro em
algum lugar, ou, pior ainda, chegar a pé.
Mas isso está
mudando, no mundo todo. Gente com muito dinheiro escolhe ir a pé ou de
bicicleta. Em Wall Street, em NY, ou na City, de Londres, pessoas que ganham
milhões (de dólares ou libras) por ano saem para almoçar a pé e no caminho de
volta, passam numa farmácia, sentam num banco, pegam um sanduíche e aproveitam
a cidade.
No Brasil, há alguns segmentos que parecem mais
refratários à mudança.
Um deles é o dos políticos e pessoas com funções
públicas – os juízes, os prefeitos, os
vereadores, os secretários, os funcionários graduados da administração
municipal e estadual, que ainda têm no carro com motorista um sinal de seu
status. Ou seja, quem faz as leis, quem administra as calçadas, quem fiscaliza
o cumprimento da boa educação no trânsito de um modo geral não se coloca na
posição de quem anda. E isso faz com que a cidade fique de fora dessa visão
mundial. Há exceções, claro. Em São Paulo, o vereador Police Neto, por
exemplo, abriu mão do carro oficial e faz seus deslocamentos em bicicleta ou
transporte público. O secretário de Mobilidade da Prefeitura, Sergio Avelleda,
também se desloca prioritariamente em bicicleta. São exceções bem-vindas, que
deveriam em tese aumentar a empatia em relação a quem está na fila de um ponto
de ônibus lotado ou quem tenta atravessar a rua numa faixa de pedestre.
Outro segmento é o dos que usam o carro como uma
maneira de fugir da cidade, do barulho, do
calor e das pessoas. Hoje de manhã eu vi um carro de luxo, talvez fosse um
Porsche, ou algo assim, passando a pelo menos 100km/hora numa rua de um bairro
residencial. Sentado num banco confortável, ouvindo música alta, com o ar
condicionado regulado para 21 graus, o sujeito atrás dos vidros escuros
provavelmente viu a rua vazia e acelerou, sem ligar para as pessoas nas
calçadas, passeando num domingo de manhã, com cachorros na coleira e um pai com
duas crianças que se assustaram com o barulho do motor.
Mas, há mudanças acontecendo, há pessoas envolvidas
com a melhoria da cidade e dos espaços públicos. Há
empresários que investem recursos pessoais para plantar árvores em praças. Há
comerciantes que cuidam das calçadas. Há uma nova geração de arquitetos e
urbanistas e gestores públicos que se preocupam com a qualidade de vida na
cidade, com a possibilidade de andar a pé e aproveitar a rua.
Compartilhamento de bicicletas em Londres. Foto: M.Calliari
Em algum momento na sua longa história, Londres já
teve lama nas ruas, e os pedestres morriam de medo dos carros, o cheiro do
Tâmisa era insuportável e a poluição matou mais de 4 mil pessoas no grande smog de
1952. Ou seja, tudo mudou por lá, graças à vontade muitos, desde os que andam
nas ruas por falta de opção, mas principalmente graças à vontade dos que
acreditam que andar de metrô e ônibus e a pé é o único jeito de uma cidade
funcionar – quando todos podem se locomover juntos.
Torço para que o
Washington Olivetto também ande muito em São Paulo e tenha uma boa experiência
em nossas ruas. Torço também para que o prefeito João Doria caminhe por São
Paulo. Só quem adota o ponto de vista do pedestre vai conseguir liderar a
transição para uma cidade caminhável, com bom transporte público, alinhada com
o que está acontecendo fora daqui.
Quem sabe não haverá
um dia em que políticos, juízes, secretários, empresários, advogados,
costureiras, engenheiros da CET, pedreiros, profissionais liberais,
professores, estudantes, publicitários, empregadas domésticas, vendedores e
porteiros se encontrem na mesma calçada, no mesmo vagão do metrô?
E que todos possam chegar com segurança e algum
prazer aos seus destinos, exatamente como se estivessem em Nova York, Londres
ou Paris?
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