“Em todo adulto espreita uma criança – uma criança eterna, algo que está sempre vindo a ser, que nunca está completo e que solicita cuidado, atenção e educação incessantes. Essa é a parte da personalidade humana que quer desenvolver-se e tornar-se completa” (Jung, O Desenvolvimento da Personalidade, p. 175)
Todos nós carregamos dolorosas lembranças de cenas infantis traumáticas que contém uma intensa carga afetiva, um forte magnetismo e uma grande influência em nossas vidas adultas. É inegável a correlação entre trauma infantil, distorções futuras da realidade e sofrimento. É inegável, também, que para desfrutarmos de uma vida mais significativa e vivermos uma realidade menos distorcida por nossos complexos, devemos ouvir e acolher nossa criança interior negligenciada. Mas buscar o contato com ela não significa apenas investigar as teias psíquicas/emocionais que ligam as dificuldades atuais às cenas traumáticas da infância. O reencontro como nossa criança interior é, também, uma oportunidade para darmos vazão à natureza lúdica e espontânea da criança que ainda nos habita.
A parte infantil de nossa personalidade é dual. “O eu infantil é espontâneo, criativo, brincalhão, sensível, reativo emocional e fisicamente, e cheio de prazer, deslumbramento e amor. (…) Mas a criança também é egocêntrica, exigente, dependente, irresponsável, não discriminativa, caótica, imatura e supersticiosa” (Thesenga, O Eu sem Defesas, p. 79). Podemos ver o “eu criança” operando em nós, adultos, nessas duas facetas. Ele pode interferir tanto limitando percepções e escolhas quanto nos oferecendo novas e criativas formas de perceber e escolher.
Como tudo o que existe possui uma dupla face, é fato que o contato com nossa criança interna nos conduz tanto à revivência das dores, traumas e abandonos infantis, quanto à revivência de nossa inocência, espontaneidade, encantamento e criatividade. Trabalhar com nossa criança interior exige de nosso eu adulto uma dupla habilidade: a de ser “aluno/aprendiz” e “professor/pai”. Temos muito a ensinar e a aprender com nossa parte infantil. Podemos nos nutrir das energias criativas e espontâneas do eu criança e devemos ajudar no amadurecimento de seus aspectos não desenvolvidos, imaturos e egoístas.
A criatividade, a confiança, a espontaneidade, a simplicidade, a intuição e a capacidade de conceber a vida de forma mais positiva e lúdica são forças que nos habitam. Elas pertencem à parte infantil de nossa personalidade e dão suporte à nossa parte adulta. Como canta Milton Nascimento, “toda vez que o adulto balança, toda vez que a tristeza me alcança, o menino vem pra me dar a mão…”
Recorrer à criança interior é buscar força renovada para lidar com às pressões externas e internas, é integrar a dimensão lúdica à vida adulta e resgatar a confiança em nosso potencial criativo. Se ignoramos ou obstruímos o acesso à nossa fonte criativa, tornamos a vida por demais concreta, dura e literal. Mas, se lançarmos mão dos recursos criativos de nossa criança interior poderemos encontrar saídas inusitadas para os inúmeros conflitos da vida cotidiana.
“Existe no interior de toda personalidade humana uma criança. (…) Essa criança interior é muito sábia. Sente-se ligada a toda a vida. Conhece o amor sem fazer perguntas. Mas é encoberta quando nos tornamos adultos e tentamos viver apenas de acordo com a nossa mente racional. Isso nos limita. Urge descobrir a criança interior para começar a seguir a orientação. Você precisa voltar à sabedoria amante, confiante, da sua criança interior para desenvolver a capacidade de recebê-la e segui-la. Todos ansiamos por liberdade – e através da criança a lograremos. Depois de conceder mais liberdade à sua criança, você poderá iniciar o diálogo entre a parte adulta e a parte infantil da sua personalidade. O diálogo integrará a parte livre e amante da sua personalidade com o adulto sofisticado” (Brennan, Mãos de Luz, p. 36).
Essa integração resulta em crescimento/desenvolvimento emocional e psicológico. Na psicologia junguiana, a criança, enquanto símbolo, guarda estreita relação com o processo de individuação. Por ser a portadora da força criativa capaz de promover a religação do ego com as orientações do Self, a criança é símbolo do desenvolvimento rumo à autonomia e à realização.
Para Jung, o símbolo da criança traz em si a ideia de potencialidade, de realização da potência. Em A Psicologia do Arquétipo da Criança, ele descreve os poderosos atributos da criança simbólica:
“é uma personificação de forças vitais, que vão além do alcance limitado da nossa consciência, dos nossos caminhos e possibilidades, desconhecidos pela consciência e sua unilateralidade, e uma inteireza que abrange as profundidades da natureza. Ela representa o mais forte e inelutável impulso do ser, isto é, o impulso de realizar-se a si mesmo” (Jung, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, p. 171, parágrafo 289).
A criança simboliza a união dos opostos, a síntese, a integração de conteúdos inconscientes. É um símbolo que interliga o passado e o futuro, o frágil e o poderoso, o tolo e o sábio… O arquétipo da criança tem, portanto, um efeito redentor, capaz de compensar ou corrigir as inevitáveis unilateralidades ou extravagâncias da consciência. Quando emerge num adulto, por exemplo num sonho, anuncia o nascimento de uma nova consciência, que contém a chave para abrir a porta de saída de um conflito, com o qual a mente consciente unilateral não estava sabendo lidar.
A criança arquetípica, assim como outros motivos que também possuem a qualidade de perfeição (mandala, flores, pedras preciosas), carrega em si uma força libertadora, um convite para que façamos contato com nosso potencial de síntese, de unidade e de auto realização. Um convite para que nos inspiremos nas qualidades características desse arquétipo: sinceridade, pureza, autenticidade e abertura para o futuro.
“Um aspecto fundamental do motivo da criança é o seu caráter de futuro. A criança é o futuro em potencial. Por isso a ocorrência do motivo da criança na psicologia do indivíduo significa em regra geral uma antecipação de desenvolvimentos futuros (…) A vida é um fluxo, um fluir para o futuro e não um dique que estanca e faz refluir.Não admira portanto que tantas vezes os salvadores míticos são crianças divinas. Isto corresponde exatamente às experiências da psicologia do indivíduo, as quais mostram que a ‘criança’ prepara uma futura transformação da personalidade. No processo de individuação antecipa uma figura proveniente da síntese dos elementos conscientes e inconscientes da personalidade. É, portanto, um símbolo de unificação dos opostos, um mediador, ou um portador da salvação, um propiciador da completude”. (Jung, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, p.165, parágr. 278)
A criança divina arquetípica que habita nossa psique, a criança real que um dia fomos e a criança ferida dentro de nós são, todas, portadoras de luz, amplificadoras da consciência. É estabelecendo contato com elas que reencontraremos o caminho da auto realização plena. Resgatá-las é tornar a brincar e a criar em nossas vidas, afinal, como bem escreveu a psicodramatista Rosa Cukier (Sobrevivência emocional: as dores da infância revividas no drama adulto), pior do que quebrar o braço na infância brincando de ser Deus, é decidir, por medo de se machucar de novo, parar de brincar de ser Deus! E essa “brincadeira”, que nada tem a ver com megalomania, inflação psíquica ou prepotência, é, junguianamente falando, nossa missão de vida mais séria. “Brincar de ser Deus” é realizar, de forma leve, criativa e perseverante, nossa mais árdua tarefa: despir nossa essência divina de todas as camadas que encobrem nosso verdadeiro eu (Self).
Para Jung, o símbolo da criança traz em si a ideia de potencialidade, de realização da potência. Em A Psicologia do Arquétipo da Criança, ele descreve os poderosos atributos da criança simbólica:
“é uma personificação de forças vitais, que vão além do alcance limitado da nossa consciência, dos nossos caminhos e possibilidades, desconhecidos pela consciência e sua unilateralidade, e uma inteireza que abrange as profundidades da natureza. Ela representa o mais forte e inelutável impulso do ser, isto é, o impulso de realizar-se a si mesmo” (Jung, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, p. 171, parágrafo 289).
A criança simboliza a união dos opostos, a síntese, a integração de conteúdos inconscientes. É um símbolo que interliga o passado e o futuro, o frágil e o poderoso, o tolo e o sábio… O arquétipo da criança tem, portanto, um efeito redentor, capaz de compensar ou corrigir as inevitáveis unilateralidades ou extravagâncias da consciência. Quando emerge num adulto, por exemplo num sonho, anuncia o nascimento de uma nova consciência, que contém a chave para abrir a porta de saída de um conflito, com o qual a mente consciente unilateral não estava sabendo lidar.
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