segunda-feira 07 2015

"O PT é vítima do seu próprio ódio"

Leandro Karnal

"O PT é vítima do seu próprio ódio"
Um dos mais respeitados intelectuais brasileiros explica por que os casos de intolerância política, religiosa, de gênero e racial se tornaram tão frequentes em nossa sociedade
por Paula Rocha (paularocha@istoe.com.br)
O historiador brasileiro Leandro Karnal, 52 anos, é uma das vozes mais lúcidas e interessantes do meio acadêmico no País. Natural de São Leopoldo (RS), se formou em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em sua cidade natal, antes de mudar para São Paulo, onde concluiu doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). 

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CRÍTICA
'Religião é ao mesmo tempo alvo e fonte de preconceito'

Atual professor de História na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele soma mais de 30 anos de docência e coleciona palestras e apresentações pelo mundo, onde discorre sobre temas como o ódio e a história das religiões.

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'A política brasileira hoje vive de agendas dependentes. O deputado Jean Wyllys 
depende do deputado Jair Bolsonaro, e vice-versa, porque o discurso 
de um é determinado pelo discurso do outro'
Nesta conversa com ISTOÉ, Karnal, que é autor de cinco livros, o mais recente deles “Pecar e Perdoar: Deus e Homem na História” (Editora Nova Fronteira), fala de maneira direta sobre a natureza passional do brasileiro, nosso histórico de violência e sobre recentes casos de intolerância religiosa, política e de gênero no País e no mundo. 

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'A Síria é o panorama radical da ausência de diálogo e da vitória da intolerância'
No livro“Raízes do Brasil”, de 1936, Sérgio Buarque de Holanda criou a metáfora do brasileiro como homem cordial. O que ele quis dizer com isso?
LEANDRO KARNAL -
 O homem cordial não é um homem pacífico, mas apaixonado. A intolerância é uma marca histórica do brasileiro. Matamos por identidade e por oposição de identidade. O que Sérgio Buarque desenvolveu foi a ideia do brasileiro cordial não no sentindo de ser bonzinho, mas no sentido de pensar com o coração, ou melhor, de ser passional. Ele estava dizendo que quando nós ajudamos ou matamos alguém, quando trucidamos ou somos caridosos, estamos sendo cordiais e não racionais. A nossa passionalidade nos faz ajudar a um desconhecido, coisa que não acontece com tanta frequência na Europa, por exemplo. Mas também nos leva a linchar bandidos. A passionalidade vale para o bem e para o mal. 
 Como essa passionalidade marca a história do Brasil e nossa identidade como brasileiros?
LEANDRO KARNAL -
 A história do Brasil é uma história violenta, ao contrário do que nos ensinaram na escola. Nós somos um país com um histórico de estupros, linchamentos e ataques variados. Nós vivemos em um país que hoje tem clima social de guerra civil, mas nenhum livro de História trata da história do Brasil como guerra civil. Nós sempre demos outros nomes, como revolta, revolução, etc. Mas nós já vivemos dezenas de guerras civis. Só que nunca usamos essa palavra que argentinos, colombianos e americanos usam. É difícil para o brasileiro admitir isso. Nós construímos a fantasia do brasileiro como povo cordial, no sentido de povo gentil. Nós temos mais horror à nossa imagem de violência do que à violência em si. E a violência acontece todos os dias. É a violência dos evangélicos contra os praticantes de religiões afro, do homem contra a mulher, do motorista contra o ciclista. Todos são alvo de violência sistemática. Os números de morte no trânsito no Brasil são de fazer inveja a muita guerra. E, aparentemente, essa violência não nos choca.
 Durante as eleições presidenciais de 2014, o ódio político se intensificou no Brasil e essa polarização continua sendo demonstrada nas redes sociais. Como explicar essa exacerbação?
LEANDRO KARNAL -
 Houve três momentos de forte polarização política na história do Brasil. Entre 1935, com a Intentona Comunista, e 1938, com a Intentona Integralista; em 1964 com o Golpe Militar e agora. A diferença é que, se antes a política era restrita a partidos ou a alguns movimentos, hoje ela está democratizada no sentido numérico. A polarização política está na internet. E isso possibilita que esse ódio transborde do debate político para o ataque a pessoas identificadas como inimigos políticos. Não há ninguém inocente. No passado, o PT polarizou o ódio, ora contra Sarney, ora contra o PSDB. E, assim como o Dr. Frankenstein sofre o ataque de sua criatura, agora esse sentimento se volta contra o PT. O PT é vítima do seu próprio ódio. Além disso, a política brasileira hoje vive de agendas dependentes. O deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) depende do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), e vice-versa, porque o discurso de um é determinado pelo discurso do outro. E personalidades que pregam o ódio se destacam mais. 

 A internet também se tornou palco para ataques recentes aos movimentos feministas que ganharam as ruas há cerca de um mês. Por que a luta feminina gera tanta força contrária?
LEANDRO KARNAL -
 O macho está se sentindo cercado. Nós chegamos ao absurdo de fazer uma celeuma nacional por conta de um texto de 1949 de Simone de Beauvoir. A tradição da misoginia é certamente a mais sólida de todas as tradições preconceituosas do planeta. A misoginia é o preconceito mais antigo, estruturado e danoso de todos. E é possível que outros preconceitos históricos, como a homofobia, sejam filhos da misoginia. Gays mais femininos são mais atacados porque no fundo o que se ataca é a mulher, como se a mulher fosse um mal. As religiões reforçam essa ideia, ao dizer que o mal veio da mulher, de Eva. Porém, esse ataque, do ponto de vista psicanalítico, possivelmente é recalque de homens que durante parte da vida foram controlados por mulheres, como quase todos nós fomos criados e controlados por uma mulher na infância. Os homens têm muito medo das mulheres. Violência, estupro e assédio fazem parte de um compromisso do homem para matar esse medo. O ataque a homossexuais e a mulheres, realizado dominantemente por homens, é um sinal de que hoje o grupo mais assustado da sociedade são os homens. Porque o espaço tradicional da identidade do homem está sendo fechado. O preconceito é sempre filho do medo. É sempre fruto da minha covardia, sempre um diálogo com minha fraqueza. Um homem preconceituoso que agride mulheres é alguém com uma profunda e temerosa identidade de pavor, porque ele não sabe quem é nem onde se insere. O seu ataque e a sua ignorância são um grito de medo. A violência contra a mulher é histórica e cultural e deve aumentar à medida que a consciência feminina trouxer essa questão cada vez mais à tona para debate. Ela deve aumentar exatamente porque as mulheres, com toda razão e muita dignidade, estão enterrando um período histórico de aceitação da violência, estão enterrando séculos de tolerância ao assédio, séculos de ocultação da violência doméstica. Nós temos dias muito promissores pela frente. Mas temos também violência. 
 Este ano também foi marcado por episódios de intolerância religiosa no Brasil, com vários relatos de ataques a praticantes de religiões afro principalmente. 
LEANDRO KARNAL -
 Estamos presenciando a ascensão de uma competitividade religiosa, por conta de uma mudança de composição. O bloco católico está perdendo hegemonia, enquanto o evangélico cresce. Por isso, a identidade religiosa e o sentimento de pertencimento religioso estão mais fortes na sociedade brasileira agora. E em lugares que têm essa identidade religiosa muito forte, como por exemplo, Israel e Palestina, a violência é constante. A identidade religiosa do brasileiro era mais fluida. Hoje nós estamos vendo, inclusive, um aumento do controle político por parte de determinadas religiões. A religião seca lágrimas e a ciência não, por isso é muito difícil não apelar para a religião. Mas a religião é ao mesmo tempo alvo e fonte de preconceito. A religião elimina o “eu”. Religiões transformam tudo em virtude, inclusive o ódio. 
 É possível combater a intolerância?
LEANDRO KARNAL -
 O combate à intolerância se dá através da educação e da coerção pela lei. A lei não eliminou o racismo, mas foi um passo importante. Talvez seja a hora de criminalizar a homofobia e os crimes de intolerância religiosa. 
 Os ataques recentes do grupo Estado Islâmico em Paris expuseram o mundo a uma nova ameaça de terrorismo gerado pelo extremismo religioso. Como entender essa tragédia?
LEANDRO KARNAL -
 Os atentados em Paris são um exemplo do preconceito que se transforma em violência. O radicalismo armado com base religiosa é o pior tipo de radicalismo que existe. Ele transforma a violência em virtude, garante o paraíso a assassinos e santifica a imbecilidade como estratégia. Transmutar o mal num bem supremo e desejável é o silogismo mais danoso às sociedades. Hoje a intolerância que está na moda é o fundamentalismo religioso. Ele é um guarda-chuva amplo sob o qual divergências políticas, atritos sociais e disputas pelo poder são santificados em nome de um deus. Quando há mistura de intolerância religiosa com intolerância política, o resultado extremo pode ser verificado na Síria. Dividida entre a ditadura, rebeldes armados e o Estado Islâmico, o país vive um colapso absoluto. Sua população está se jogando ao mar. A Síria é o panorama radical da ausência de diálogo e da vitória da intolerância.  
As ações do Estado Islâmico são caracterizadas por uma violência extrema. Qual é o propósito dessa violência para a consolidação da imagem do grupo terrorista?
LEANDRO KARNAL -
 Para o Estado Islâmico, a morte é uma estética, uma pul­são desejável e atrativa, uma quebra do tédio e da mediocridade do cotidiano. Ela dá ao indivíduo fracassado e pequeno uma dimensão épica. O terrorista, ou o radical, seja ele católico dos antigos ETA e IRA, seja ele o estereotipado fundamentalista muçulmano, sempre verá no diá­logo uma fraqueza. 

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