Nós brasileiros estamos dizendo "não" à tradição da imoralidade e, paradoxalmente, o resultado da crise pode ser positivo
Ninguém ignora que podemos usar a verdade ou a lei para enganar o próximo. Trata-se de uma conduta perversa ou, noutros termos, imoral. Só não digo que o Brasil de hoje atravessa uma crise moral porque a imoralidade está inscrita na nossa formação social. Vale lembrar que o país foi o último a abolir a escravidão.
Mas nós brasileiros estamos dizendo "não" à tradição da imoralidade e, paradoxalmente, o resultado da crise pode ser positivo. O caminho do "não" ao uso perverso da lei é o único possível, e nós estamos trilhando este caminho. Bem ou mal, graças à imprensa, o país inteiro sabe que o jeitinho não pode mais ser usado para fazer mau uso da lei - e a lei é para todos, ainda que a sua aplicação seja morosa. Hoje, ninguém mais pode tudo. Há políticos e empresários do mais alto escalão na cadeia e outros mandados de prisão são esperados.
Por outro lado, o número de denúncias é tal que o leitor ou espectador indiretamente aprende que, sem a vigilância, não há como frear o abuso. Tenderá com isso a não votar sem a consciência clara do que está fazendo. Vai valorizar o voto e se valorizar.
O Brasil enfrenta uma guerra interna que pode ser vencida se, além de punir o crime, nós soubermos diferenciar o bom e o mau uso da lei. Isso significa que a imprensa deverá informar e também interpretar os fatos, e a escola deverá se preocupar menos com o ensinamento dos saberes todos e mais com a transmissão de valores, com o respeito à lei e a aceitação dos limites. Do contrário, a vida não é possível - e a tragédia do Rio Doce infelizmente demonstra isso. Como diz Montaigne, uma cabeça bem-feita é mais preciosa do que uma cabeça lotada.
Aplicar a lei e punir é uma coisa, fazer a prevenção do crime é outra, e ela depende, em grande parte, do ensinamento da contenção desde a primeira idade, como se faz na França, onde a noção de direito é central. Os franceses educam os filhos dizendo "você tem o direito" ou "você não tem o direito". O resultado é um país que preserva o seu patrimônio e a sua natureza. Não exporta como os Estados Unidos, mas inspira o mundo inteiro. Nem Hitler conseguiu bombardear Paris, e os franceses assassinados pelo terror, no ano de 2015, nunca serão esquecidos por terem se tornado símbolos da civilidade e do direito à liberdade. À sua revelia, as vítimas são heróis.
O ano de 2016 será novo se tirarmos das tragédias de 2015 as lições que podem ser tiradas. Se cada um de nós se impuser limites e não aceitar abusos, o que significa estar continuamente atento. O ano será tanto melhor quanto maior o respeito pela crença alheia e pela terra onde vivemos. A palavra de ordem alvissareira, implícita na Conferência do Clima de Paris, é controlar o mercantilismo e ensinar a contenção.
A psicanalista e escritora Betty Milan é autora de romances, ensaios, crônicas e peças de teatro. Foi colunista da Folha de São Paulo, de VEJA e da VEJA.com, onde assinou a rubrica Consultório Sentimental. Formou-se em Medicina na USP e se especializou em Psicanálise, na França, com Jacques Lacan.
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