sábado 04 2014

A eloquência do silêncio

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silêncioA importância do silêncio numa narrativa de ficção se manifesta de diversas formas, incluindo as óbvias elipses e subentendidos, pois, como disse Erico Verissimo (que cito de memória), “um dos segredos do romancista é nunca explicar demais”. Tudo aquilo que não é dito oferece à imaginação do leitor – coautor pouco comentado de qualquer obra literária – espaço para se espraiar, ligar os pontinhos, produzir e não apenas decifrar sentido. Embora geralmente esquecido, até mesmo o silêncio que vem antes da primeira frase do texto, como os milênios de não-ser que precedem o nascimento de qualquer bebê, é tão fundamental quanto o clímax de uma história. O silêncio que vem depois do fim, então…
Vamos começar pelo começo. Entramos em “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro, um dos grandes romances de nossa literatura, vendo o herói ser fuzilado. A sugestão de uma longa história passada, mas calada, insinua-se na estranha precedência de uma conjunção adversativa a adversar o ignorado:
Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias, pouco antes de receber contra o peito e a cabeça as bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas bombardetas portuguesas, que daqui a pouco chegarão com o mar.
Se repararmos bem, veremos que o longo futuro da história também já se encontra, cifrado, nessa abertura. Mas por que o relato não começa antes? Como José Francisco foi parar na Ponta das Baleias naquele momento fatal? Que vida teve? Será que sabia tocar rabeca, amou uma ou várias mulheres, contraiu caxumba na infância? Quem são seus pais, seus avós, seus antepassados remotos? Por que começar justamente ali?
Porque o resto – tal é o poder que tem o texto literário de transformar em determinismo as opções autorais mais arbitrárias – é silêncio.
Se o silêncio que antecede a primeira palavra de uma história costuma passar despercebido, aquele que vem depois do ponto final é de uma eloquência ensurdecedora. Dificilmente haverá um escritor que não tenha, em algum momento, se deparado com esta queixa, que por sinal é muitas vezes infundada: “Mas a história não termina…”.
Que o leitor, sobretudo aquele de um tipo mais ingênuo, exija como final de qualquer relato ficcional um arremate claro que junte todas as pontas da trama, de preferência num laçarote vistoso e provido de uma inequívoca moral, é compreensível. O problema é o autor acreditar que deve obrigatoriamente se curvar a tal demanda, deixando de compreender o quanto de reverberação pode acrescentar à sua história, em certos casos, um silêncio brusco, aparentemente prematuro e definitivamente perturbador.
Não me refiro aqui ao simples ato de apontar um futuro em branco, um pós-texto qualquer, deixando ao leitor um convite ao preenchimento do vazio da página, como se vê por exemplo no engenhoso – e famoso – fim de “Uma aprendizagem”, de Clarice Lispector:
… eu penso o seguinte:
Ocorre que, a essa altura, o conflito central do livro de Clarice já se resolveu, Lóri e Ulisses estão na cama, o que torna a indeterminação do futuro uma esperteza estilística – além de um espelho da vida real, claro, comentário irônico sobre a tentação do impossível “felizes para sempre” que insiste em rondar as expectativas daquele nosso leitor ingênuo.
Contudo – como diria João Ubaldo –, o silêncio brusco, aparentemente prematuro e definitivamente perturbador exige mais do que isso. É preciso que o conflito que moveu a narrativa, ou pelo menos uma parte dele, fique sem solução. É preciso obrigar o leitor a apostar num dos desenlaces possíveis e ao mesmo tempo condená-lo à tortura eterna de não saber se ganhou ou perdeu.
Um dos exemplos mais antigos e bem-sucedidos que conheço desse tipo de fim está na novela “A interdição”, de Honoré de Balzac (no volume 4 de “A comédia humana”, na nova edição da Biblioteca Azul), uma de minhas leituras de fim de ano. A história gira em torno do processo de interdição que move uma rica parisiense – uma daquelas mulheres ambiciosas, vaidosas, calculistas e ordinárias que Balzac adorava pintar – contra o ex-marido, de olho em sua fortuna, sob a alegação de que o sujeito enlouqueceu.
Aqui sou obrigado a incluir um spoiler, o que imagino não ser grave no caso de um livro lançado em 1836, mas vale o alerta: o ex-marido é um nobre dotado não apenas de lucidez, mas também de um caráter admirável que o leva a atos de um desprendimento vertiginoso. O juiz encarregado do caso, não menos probo, percebe isso tão claramente que chega a se emocionar. A história se encaminha para um fim previsível e reconfortante: o processo de interdição é ignóbil, será rejeitado, que beleza.
Aí entra o gênio de Balzac. Sob uma desculpa rota, quem sabe um mal-entendido, o juiz honesto é afastado na última hora do caso. Em seu lugar nomeia-se um juizinho novato, arrivista, venal. Fim.
Como assim – fim? E o processo que dá título à narrativa? Qual é o veredito? Não sabemos. Ao condenar moralmente o novo juiz, as últimas linhas nos levam a supor que o nobre homem será lesado pela ex-mulher sem caráter, mas a verdade é que não temos como saber. O silêncio chega primeiro, transformando “A interdição”, que do contrário seria apenas uma boa novela, numa novela memorável.
(Em outro ponto do imenso painel de “A comédia humana”, Balzac, que gostava de voltar a personagens de livros anteriores, nos informará que a litigante de má-fé perdeu o processo, afinal. Isso não diminui em nada a reverberação que o fim de “A interdição” deixa na cabeça do leitor.)

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