Crítica de Isabela Boscov, publicada em edição impressa de VEJA
MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO
Em Argo, seu terceiro e ótimo filme na direção, Ben Affleck trata de um episódio que só não é inacreditável porque aconteceu de fato
Em meados da década passada, Ben Affleck se rendeu às evidências. Percebeu que ficaria eternizado como o ator de queixo duro deArmageddon e Pearl Harbor, e como a figura de troça dos tabloides que circulava por Los Angeles apalpando o derrière da namorada Jennifer Lopez, se não tomasse uma atitude para, como disse ele à revista Time, “alinhar a pessoa que sou com o trabalho que faço”.
O realinhamento foi iniciado em 2007, com Medo da Verdade, prosseguiu de forma muito bem-sucedida em 2010, com Atração Perigosa, e culmina agora com Argo (Estados Unidos, 2012): depois de ganhar um Oscar de roteiro com o amigo Matt Damon em 1998 porGênio Indomável, e de então descer a paroxismos de ridículo pessoal e profissional, Affleck se casou com outra Jennifer, muito mais discreta e respeitável – a atriz Jennifer Garner -, teve com ela três filhos e reconstruiu em boa medida sua carreira de ator.
E, este o detalhe mais interessante, tornou-se um diretor cada vez mais hábil, e mais respeitado. Com Argo, ganhou o Oscar de melhor filme de 2012. Amparado pelo prestígio e por bilheterias sólidas, é objeto de tanta fé na Warner que tem sido o primeiro a receber os melhores roteiros que o estúdio tem sob sua consideração.
Como o do próprio Argo, que o roteirista Chris Terrio escreveu a partir de arquivos tornados públicos em 1997 e com base em uma série de conversas com um ex-agente da CIA que esteve no centro de um episódio inacreditável – no sentido básico da palavra.
Em novembro de 1979, quando militantes revolucionários invadiram a Embaixada dos Estados Unidos em Teerã, após semanas de cerco em protesto ao abrigo que o país dera ao xá deposto Reza Pahlevi, 52 funcionários foram feitos reféns durante 444 dias, numa das mais graves crises diplomáticas da história americana (e numa das mais sensacionais recriações de um episódio verídico no cinema).
Outros seis funcionários, porém, conseguiram escapar sem que ninguém desse por isso, e foram bater à casa do embaixador canadense. Cada dia a mais que permaneciam ali, no entanto, agravava o risco de que fossem todos descobertos e postos diante de um pelotão de fuzilamento.
Entra em cena Antonio, ou Tony, Mendez, desde a década de 60 ligado à CIA e especialista em exfiltrations – a arte de suprimir espiões, colaboradores e dissidentes de áreas fechadas. Nos seus anos de atividade até então, Mendez retirara um sem-número de indivíduos de trás da Cortina de Ferro.
Dada a volatilidade do quadro no Irã, ele propôs aquilo que, no filme, descreve como “a melhor das ideias ruins”.
Mendez posaria de produtor de cinema canadense, em Teerã com sua equipe (os seis fugitivos, devidamente munidos de documentação fornecida pelo Canadá e aprovada na primeira sessão secreta do Parlamento desde a II Guerra) a fim de buscar locações para uma certa ficção científica batizada de Argo – como o navio em que, na mitologia grega, Jasão vai buscar o Velo de Ouro.
(O próprio Mendez conta a história no livro homônimo, que está sendo lançado aqui pela Intrínseca.)
Canadenses são objeto de simpatia mundo afora, o que amenizaria o cerco ao grupo de estrangeiros. E é perfeitamente plausível que em Hollywood haja gente tão alheia ao que se passa no mundo que cogitaria visitar o Irã no auge da revolução islâmica.
A fim de vedar as brechas do plano, Mendez contactou amigos seus em Hollywood para formar uma produtora legítima, a Studio Six, além de comprar um roteiro existente, desenhar storyboards, bolar currículos falsos para os refugiados e dar festas com a cobertura do jornal especializado Variety.
“Se vou fazer um filme de mentira, pode ter certeza de que ele vai ser um sucesso, mesmo que também de mentira”, ironiza o produtor Lester Siegel (na verdade, o especialista em efeitos Bob Sidell), que entra na dança junto com o artista de maquiagem John Chambers, oscarizado por seu trabalho em O Planeta dos Macacos.
Siegel e Chambers, interpretados com humor vívido por Alan Arkin e John Goodman, são figuras típicas de uma década que Affleck, além de recriar, homenageia: no tratamento da película, no desadorno da encenação e no tom mordaz, Argo se inspira naquele cinema dos anos 70 que, a exemplo de filmes como Todos os Homens do Presidente eRede de Intrigas, batia forte, e entretinha muito.
Já o desempenho do próprio Affleck como Tony Mendez é de discrição contumaz.
De talentos menos notáveis como ator que como diretor, ele aqui, da mesma forma que em Atração Perigosa, deixa os papéis mais suculentos para o restante do elenco e, acertadamente, escolhe o personagem cuja habilidade profissional é nunca chamar atenção para si.
“Meu trabalho era ser invisível. Espiões de verdade não usam armas nem explodem prédios, como James Bond, porque depois não poderiam entrar lá e pegar mais informações”, disse a VEJA o verdadeiro Mendez. (Ou seja lá quem ele for: na entrevista ao editor Duda Teixeira, o agente se recusou a sequer confirmar que esse fosse seu nome verdadeiro.)
Essa inescrutabilidade do protagonista serve muito bem à estrutura robusta de Argo: embora Affleck e o roteirista Chris Terrio tenham enfeitado consideravelmente os fatos no último ato do filme em prol do suspense que se acirra até quase o intolerável, nos dias que transcorreram desde a entrada de Mendez em Teerã, em 25 de janeiro de 1980, até o desfecho de sua operação, o agente viveu momentos de medo genuíno.
Quando a fisionomia de Mendez começa a trair sinais de pânico, portanto, a situação em que ele e os seis refugiados se encontram é palpável, em todo o seu risco e precariedade, para a plateia.
Enquanto isso, em Hollywood, os telefones da Studio Six não paravam de tocar: eram diretores e produtores que tentavam vender seus projetos, certos de que uma companhia fundada sobre um sucesso potencial como Argo só poderia ter um futuro próspero.
Até Steven Spielberg mandou um roteiro para a Studio Six. Em nome da plausibilidade da fachada criada pela CIA, os interessados eram todos atendidos ou recebidos no escritório que Michael Douglas deixara vago ao concluir Síndrome da China. E isso, por mais estranho que pareça, não é ficção. Foi fato.
“Se a história é boa, ela vende ingressos’
Ben Affleck falou a VEJA sobre as implicações políticas de um filme como Argo e sobre os prós e os contras de dirigir a si mesmo
Atração Perigosa chegou perto dos 100 milhões de dólares nos Estados Unidos, e Argo está no caminho de fazê-lo. Mas diz o senso comum que filmes para maiores de 18, com temas duros ou difíceis, espantam o público. Há uma lição a ser tirada daí?
Tirar conclusões, em Hollywood, é um negócio arriscado. Mas vá lá: como já se sabia, há sim uma audiência que aprecia filmes adultos. ComArgo, pus de lado as considerações comerciais apriorísticas e tentei trabalhar sob a crença, aliás bem antiga, de que, se a história é boa, ela vende ingressos. Ainda que não tantos quanto um filme de ação.
Seus filmes como diretor, porém, têm um elemento forte de ação ou suspense. É uma isca para a plateia?
De certa forma. Se você quer que o público fique com seu filme, tem de sustentar o interesse dele. Mas quero acreditar que a ação e o suspense nos meus filmes não são elementos enxertados na trama, e sim decorrência natural e inevitável dela. Em Argo, no centro de tudo está uma questão elementar: o risco real de vida.
Você cogitou filmar em Teerã?
Eu tinha a ambição de rodar ao menos as cenas mais essenciais em Teerã. E, sim, teria sido possível ir – exceto pelo fato de que eu não teria controle sobre o uso político a que me prestaria. Talvez minha simples presença lá pudesse ser tomada como um endosso do regime.
Tentamos contactar cineastas iranianos para que eles rodassem certos trechos para nós, mas compreensivelmente ninguém se dispôs a arriscar assim o próprio pescoço.
O que fizemos, então, foi tentar nos ater o mais fielmente possível às imagens reais da invasão, por exemplo. Que são mais poderosas do que qualquer coisa que eu poderia inventar. [Parte do filme foi realizado na Turquia.]
Argo tem uma constatação política clara a fazer: apoiar chefes de Estado convenientes do ponto de vista político mas moralmente objetáveis trará, em algum momento, consequências incontroláveis.
Constatação é a palavra certa: não me sinto no direito de dizer à plateia o que ela deve achar certo ou errado, mas creio que é minha incumbência trazer este ou aquele assunto à luz.
No caso, a questão é: vale a pena fazer negócio com ditadores, tiranos ou corruptos simplesmente porque eles estão do nosso lado ou servem aos nossos interesses? Enquanto rodávamos Argo, Hosni Mubarak estava caindo no Egito depois de trinta anos no poder, nos quais, como o xá do Irã, Reza Pahlevi, conduzira uma política de ocidentalização e boas relações.
Ou seja, sinto que a indagação continua tão oportuna quanto no período da Guerra Fria, quando esse modelo de política externa americana se originou.
Você já havia se dirigido em Atração Perigosa, mas aqui seu papel é ainda maior. Isso cria complicações adicionais?
Qualquer ator que dirija a si mesmo vai lhe dizer que às vezes é um desafio concentrar-se na emoção de uma cena quando tem de pensar também na geometria dela e coordenar uma equipe de 200 pessoas.
Mas há vantagens.
Aquelas catorze semanas de preparação do diretor antes do início da filmagem são extremamente úteis também para você como ator; e a urgência de desempenhar duas funções se traduz em mais vibração ou mais naturalidade, conforme o caso, na maneira como a cena resulta. Mas a maior de todas as vantagens, de longe, é que, quando você dirige a si mesmo, o ator e o diretor estão sempre de acordo.
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