Mostra no Louvre retrata a Alemanha como um \"vizinho sinistro, sombrio e perigoso\" e azeda relações já delicadas
Sheila Leirner / Paris - Especial para O Estado de S. Paulo
Enquanto o jornal Le Monde divulga um texto "contra a Europa do rigor", que o Partido Socialista francês apresentará denunciando a "intransigência egoísta de Merkel", no campo da cultura, importantes jornais alemães como o Die Zeit denunciam a exposição Da Alemanha, de Friedrich a Beckmann, inaugurada no final de março no Museu do Louvre, como um "ultraje nacional". É guerra! Europa do sul contra Europa do norte, latinos contra germânicos. Decididamente, as coisas vão tão mal nas relações franco-alemãs neste momento que os dois países não podem mais se ver nem "pintados".
Divulgação
Obra de Caspar David Friedrich
Museu do Louvre germanófobo? Não exageremos. Certamente foi com a melhor das intenções que o museu organizou esta mostra no âmbito oficial da comemoração do tratado de amizade entre os dois países, assinado em 1963 por Charles de Gaulle e Konrad Adenauer. E foi com um enorme esforço que conseguiu reunir quase 300 obras de qualidade.
O problema é que, de fato, ao querer revelar aos franceses a identidade de um país (que já possui uma história complicada) por meio de obras que se desenvolvem dentro de uma lógica própria e absolutamente "nacional", os curadores forçosamente estabeleceram uma leitura teleológica de ligação direta com o nacional-socialismo. Nem as manifestações libertárias, revolucionárias, cosmopolitas e internacionalizantes de Bauhaus, Dada, expressionismo inicial, Der Blaue Reiter, estão presentes para não estragar essa visão identitária, em bloco, desejada pelos curadores.
Mesmo o período escolhido - de 1800 a 1939 - foi infeliz e parece tendencioso. O afivelamento da mostra, então, é mais que duvidoso: um filme da cineasta nazista Leni Riefenstahl, a preferida de Hitler, e O Inferno dos Pássaros, uma tela emblemática de Max Beckmann. Esta obra premonitória, à altura da Guernica de Picasso, contém todo o simbolismo do horror. O público sai da exposição convencido de que os românticos já anunciavam a catástrofe hitleriana e que há quase dois séculos a Alemanha estava realmente predestinada ao nazismo.
Não é por acaso que os críticos alemães denunciaram um "escândalo político-cultural" e acusaram o Louvre de "construir" a história do país corroborando os clichês dos franceses que o designam como "um vizinho sinistro, sombrio, romântico e perigoso". Se, na cabeça destes críticos, a visão identitária da nação alemã não existe pois sabe-se que os intelectuais alemães são um pouco amnésicos, como é que os franceses podem "pretender compreender o que é a Alemanha" e, ainda por cima, por meio de sua arte
E não é só isso. Sabe-se também que os franceses são jacobinos. A França é um país centralizado, com uma identidade monobloco, definida e simples. A Alemanha, não. A história dela é fragmentada e complexa, nasce de reinos e principados. Geográfica e politicamente ela é policêntrica. Pode-se dizer que a unidade alemã só começou a existir realmente em 1989, com a queda do muro de Berlim. Querer reduzir aquele país a uma "identidade" monolítica como a França, simplificando-o numa exposição, é um erro muito grande.
Outros pintores, que poderiam perfeitamente ser vistos sob uma perspectiva europeia, tanto quanto Beckmann, ficam restritos à "questão alemã". Assim, a exposição divide-se em três partes: Apolo e Dioniso, Paisagem como História e Ecce Homo. A primeira é marcada por uma aspiração profunda à arte italiana e aos temas gregos. Na segunda, está Caspar David Friedrich, o pintor mais influente da pintura romântica alemã. E o último segmento lida com os traumatismos da 1ª Guerra.
Trata-se de uma belíssima e rica exposição. Quais as outras razões, então - além das formuladas acima - para tal escândalo político-cultural que ocupa páginas e páginas de jornal?
Creio que podemos encontrar ainda dois outros motivos. Primeiro, enquanto na França o olhar sobre o nazismo é, apesar de tudo, bastante neutro, na Alemanha esta parte da história continua uma ferida aberta. O segundo motivo é ainda mais atual. Nesta crise que atravessa a União Europeia, aumentaram as tensões entre a Alemanha e seus parceiros. Um número cada vez mais importante de alemães se recusa em pagar pelos outros europeus, enquanto que mais e mais europeus apontam a Alemanha como a responsável pela austeridade que se abate sobre eles. Estas tensões só exacerbaram a suscetibilidade própria dos alemães aos quais o Louvre apresentou um espelho desastrado, tentando assimilá-los ao nazismo.
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