sexta-feira 01 2013

A pele através da história


Evolução

O ser humano é o único primata que possui uma quantidade tão pequena de pelos e tantos tons diferentes de pele. Entender como essa característica evoluiu pode ter implicações diretas na saúde da espécie hoje em dia

Guilherme Rosa
pele
A pele humana evoluiu de modo independente em diferentes partes do mundo. Hoje, quando grande parte das humanidade não se encontra mais nas regiões onde seus ancestrais se desenvolveram, isso pode gerar uma série de problemas de saúde (Thinkstock)
A pele humana é uma evidência direta da evolução. A pequena quantidade de pelos e os múltiplos tons de pele foram características cuidadosamente selecionadas durante milhões de anos e representam mais do que traços cosméticos — eles são responsáveis pela sobrevivência da espécie. Hoje em dia, no entanto, essas mesmas adaptações podem conflitar com o estilo de vida moderno. “Toda essa variedade de tons de pele dentro de uma mesma espécie é incrível. Entender como isso se desenvolveu desde nossos antepassados pode ter profundas consequências para a nossa saúde hoje em dia”, diz Nina Jablonski, antropóloga da Universidade Estadual da Pensilvânia e autora do livro Living Color: The Biological and Social Meaning of Skin Color (Cores Vivas: Os Significados Biológicos e Sociais da Cor de Pele, inédito em português). No dia 16, ela participou do Encontro Anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência, em Boston, EUA, onde conversou com o site de VEJA.
Segundo as evidências mais recentes, o corpo dos antepassados humanos era repletos de pelos, como macacos. Eram caçadores-coletores que viviam nas zonas tropicais da África, onde os alimentos e a água eram abundantes, e o clima era ameno. Nestas condições, os pelos ajudavam a reter o calor corporal.
Há cerca de 2 milhões de anos, no entanto, a Terra foi atingida por uma série de mudanças climáticas, e as florestas locais não passaram incólumes. Os hominídeos da época começaram, então, a se locomover cada vez mais para conseguir suprimentos. Ao mesmo tempo, eles passaram a desenvolver um cérebro cada vez maior, o que seria essencial para o surgimento do Homo sapiens. O órgão, no entanto, era extremamente sensível a grandes temperaturas. A maior mobilidade e a sensibilidade ao calor se tornaram uma combinação perigosa. Assim, hominídeos com menor quantidade de pelos se tornaram mais aptos a sobreviver e a passar seus genes adiante — era a seleção natural em ação. “Começamos a perder nossos pelos para liberar melhor o calor do corpo”, diz Jablonski. Hoje, os humanos são os únicos primatas — e dos raros mamíferos — com poucos pelos no corpo.
No entanto, ao perderem os pelos, os hominídeos se tornaram extremamente vulneráveis ao sol da África tropical: sua pele era muito clara — como a dos chimpanzés. Ao absorver as grandes quantidades de raios ultravioleta que incidiam no local, eles podiam sofrer sérias queimaduras, desenvolver diversos tipos de câncer, além de perder vários nutrientes da pele. Um deles — o folato — é essencial para o desenvolvimento correto dos embriões e importante para o sucesso reprodutivo humano. Assim, a pele desses ancestrais foi ficando cada vez mais rica em melanina, um pigmento responsável por escurecer a pele e protegê-la dos raios ultravioleta. “Não há nenhuma relação genética entre a perda de pelo e a mudança da cor da pele. Eles apenas aconteceram em um período histórico próximo: um veio mitigar os efeitos do outro”, diz Nina Jablonski.
Explorando o planeta — Esses ancestrais humanos continuaram seu percurso natural de evolução, com cérebros cada vez maiores e postura cada vez mais ereta. Há 200.000 anos, sua anatomia tornou-se semelhante à do homem moderno, dando origem ao Homo sapiens. Mesmo após surgir como espécie, os seres humanos continuaram na África por mais de metade de sua história na Terra, carregando a pigmentação de pele perfeita para a incidência solar na região. No entanto, há 80.000 anos, os primeiros humanos começaram a deixar o continente rumo à Europa e à Ásia. Em sucessivas ondas de migração, passaram a encontrar novos ambientes, com latitudes e altitudes maiores — e menor incidência de raios ultravioleta.
O problema é que essa mesma radiação, que pode ser perigosa quando absorvida em excesso, também é essencial para a síntese de vitamina D no sangue humano. A falta dessa vitamina diminui a absorção de cálcio e deprime o sistema imunológico. Sua ausência crônica pode levar a problemas no parto, deformidades e até morte. Mais uma vez, a seleção natural começava a favorecer uma mudança na cor da pele: pessoas com menos pigmentação conseguiam produzir mais vitamina a partir do parco sol local, tornando-se mais aptas a sobreviver.
Segundo Nina Jablonski, a pele mais clara se desenvolveu três vezes de maneira isolada entre os ancestrais humanos. “Uma dessas vezes foi entre os Neandertais europeus, que, segundo estudos genéticos, tinham peles claras e cabelos ruivos. As outras duas foram entre os Homo sapiens europeus e os asiáticos”, diz. Há mais de uma década, a antropóloga publicou o primeiro estudo que mostrava as relações entre a incidência de raios ultravioleta no mundo e a distribuição das populações com diferentes tons de pele.
Devendra M SINGH/AFP
Nina Jablonski
A história na pele: a antropóloga Nina Jablonski mostrou que a cor da pele é uma adaptação evolutiva. Hoje, ela pesquisa como essa mesma pele afeta a absorção de radiação ultravioleta e a produção de vitamina D nas diversas populações
Cultura na pele — Durante dezenas de milênios, as diversas populações, com seus diversos tons de pele, continuaram a se desenvolver de maneira isolada ao redor do mundo. Quando esses povos voltaram a se encontrar, foi natural que a cor de pele alheia chamasse atenção. Segundo Jablonski, isso acontece porque os humanos são animais visuais. Mas, ela destaca, isso não quer dizer que eles estão geneticamente programados para o preconceito. Não existe nenhuma evidência de que os primeiros encontros entre populações de tons de pele diferente tenham sido afetados por essa predisposição. As relações entre Egito e Grécia antiga, por exemplo, podiam até ser violentas, mas a cor da pele não era vista como sinal de valor humano.
Foi somente com as grandes navegações que essa questão se tornou importante. Com o contato cada vez maior entre os povos, a cor da pele começou a ganhar enorme valor cultural. Biologicamente, a pigmentação é apenas o resultado da necessidade corporal de se adaptar ao ambiente. No entanto, nesse tempo ela passou a ser  entendida como sinal de hierarquia - inferioridade ou superioridade - entre as populações. Assim, mesmo sem ter nenhuma base científica, o argumento justificava a dominação econômica de populações inteiras, como a escravização das tribos africanas trazidas ao Brasil. 
Herança genética — Hoje, a viagens pelo mundo se dão de forma muito mais rápida e em quantidades muito maiores do que na época das grandes navegações. As populações urbanas se tornaram ainda mais variadas, com habitantes de todos os cantos do planeta. Essa convivência entre os diferentes povos ajudou a diminuir os preconceitos. No entanto, os tons de pele da população deixaram de estar associados à região do planeta onde habitavam, e isso começou a afetar a saúde. “Alteramos o equilíbrio que houve durante a evolução humana. Grande parte da população mundial vive longe de onde seus ancestrais viveram, com consequências previsíveis para sua saúde”, diz Nina Jablonski.
Os problemas podem ser sentidos tanto pelas populações de pele clara habitando regiões equatoriais, quanto por populações de pele mais escura em regiões de alta latitude. Além disso, quase 60% da humanidade vive em cidades, onde a exposição à luz do sol é mínima. “Durante 200.000 anos, nós passamos grande parte de nossos dias nos ambientes externos. A partir do último século, no entanto, começamos a gastar a maior parte do nosso tempo dentro das construções”, diz Nina, que conduz uma série de estudos para medir a quantidade de sol absorvida por diferentes populações ao redor do mundo e as consequências disso para sua saúde.
Os resultados iniciais de sua pesquisa são preocupantes. “Constatamos que a falta de radiação ultravioleta está levando a sérias deficiências na quantidade de vitamina D”, diz. Segundo a antropóloga, os cuidados necessários para se proteger do excesso de radiação ultravioleta já estão bem divulgados — usar protetor solar, evitar as horas de sol mais intenso —, mas o mesmo não é verdade para os efeitos deletérios da falta de vitamina D.
A pesquisadora diz que a ausência dessa vitamina pode ser parcialmente responsável por grande parte dos problemas de saúde que atingem minorias populacionais nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, como problemas cardiovasculares, diabetes e câncer. “Ao diminuir as funções do sistema imunológico, isso pode tornar essas populações mais suscetíveis a gripes e resfriados, além de infecções mais sérias”, diz. Também existem evidências de que a deficiência crônica de vitamina D está levando a um aumento nos casos de depressão sazonais.
A solução para esses problemas é simples. Pessoas com pele mais escura vivendo em zonas temperadas, por exemplo, podem simplesmente decidir tomar mais sol, ou podem escolher repor a quantidade diária que lhe falta com suplementos de vitamina D. Para isso, no entanto, elas precisam conhecer as necessidades específicas de sua pele. É impossível voltar atrás da sociedade globalizada. Não existe como — e nem seria desejável — as diversas populações do mundo voltarem para seus locais de origem. Segundo Nina Jablonski, o melhor modo de superar o descompasso entre tom de pele e radiação solar é a partir do conhecimento sobre sua herança genética. Ao saber de onde veio sua pele, como ela adquiriu sua cor atual, é possível protegê-la dos efeitos da vida moderna.

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