quinta-feira 11 2012

Leia um trecho de Mo Yan, Nobel de Literatura de 2012


Veja.com

O chinês Mo Yan, que ganhou hoje o Nobel de Literatura, aparecia em todas as listas de favoritos – na preferência dos apostadores da casa londrina Ladbrokes, estava em quarto lugar –, mas isso não quer dizer que sua obra seja conhecida no Ocidente. Como quase todo mundo, saí correndo atrás de informações sobre o homem, que não tem nenhum livro lançado no Brasil e que, na loja do Kindle, conta com apenas um título (em pré-venda!).
As notícias da premiação e o comentário de Maria Carolina Maia no vizinho “Veja Meus Livros” satisfazem a maior parte da curiosidade que se possa ter sobre o homem, uma escolha de cunho político, daquelas que o Nobel gosta de fazer. A partir do pseudônimo que adotou para escrever, e que significa “Não fale”, Mo Yan mantém relações tensas com o mundo oficial de seu país, onde a liberdade de expressão é restrita. A Academia Sueca o saudou por seu “realismo alucinatório” e o comparou a William Faulkner e a Gabriel García Márquez.
A melhor forma de conhecer um escritor, porém, é lê-lo. Por isso decidi traduzir o trecho inicial do romance Life and death are wearing me out (algo como “A vida e a morte estão acabando comigo”), uma alegoria que conta a história da China moderna por meio das sucessivas reencarnações de um fazendeiro assassinado durante a reforma agrária de Mao Tsé Tung, em 1948. Aqui, morto há pouco tempo, ele aparece sendo torturado no inferno. Como faltei às aulas de mandarim na escola, parti da tradução de Howard Goldblatt para a editora americana Arcade. Um crime tradutório, certo, mas acredito que perdoável em nome da agilidade jornalística. O humor negro do trecho é marcante.
Minha história começa no dia 1º de janeiro de 1950. Nos dois anos anteriores, nas profundezas do inferno, eu tinha sofrido torturas cruéis que nenhum ser humano seria capaz de conceber. Sempre que era trazido ao tribunal, proclamava minha inocência em tons solenes, comoventes, tristes, desgraçados, que penetravam cada greta do Salão de Audiência do Senhor Yama e repercutiam em muitas camadas de ecos. Nem uma palavra de arrependimento saiu de meus lábios, embora eu fosse torturado cruelmente, o que me valeu a reputação de homem de ferro. Sei que ganhei o respeito silencioso de muitos dos funcionários do submundo de Yama, mas sei também que o Senhor Yama não me suportava mais. Assim, para me obrigar a admitir a derrota, submeteram-me à mais sinistra forma de tortura que o inferno tem em seu estoque: atiraram-me numa tina de óleo fervente, na qual eu rolei, me contorci e chiei feito um frango frito por cerca de uma hora. Palavras não têm como fazer justiça à agonia que senti até que um servente me espetou com um tridente e, carregando-me bem alto, me conduziu à escadaria do palácio. Juntaram-se a ele dois outros serviçais, um de cada lado, que guinchavam como morcegos-vampiros toda vez que o óleo escaldante pingava de meu corpo nos degraus do Salão de Audiência, produzindo borrifos e pequenas nuvens de fumaça amarela. Com cuidado, depositaram-me numa laje aos pés do trono e fizeram uma profunda mesura.
– Grande Senhor – anunciou o servente que me carregara. – Ele está frito.
Tendo fritado até ficar crocante, eu sabia que o mais leve impacto me transformaria num monte de fragmentos estorricados. Então, das alturas do salão acima de mim, de algum ponto no meio do clarão de velas do salão acima de mim, ouvi a pergunta zombeteira do próprio Senhor Yama:
– Ximen Nao, cujo nome significa Rebelião no Portão Ocidental, há mais rebeliões em seus planos?
Não vou mentir para você: naquele momento eu balancei, meu corpo quebradiço jogado numa poça de óleo que ainda borbulhava, estalando. Eu não tinha ilusões, havia atingido o limiar da dor e não conseguia imaginar qual tortura aqueles oficiais venais empregariam em seguida se eu não cedesse agora. No entanto, se eu fizesse isso, não teria sofrido todas as brutalidades anteriores em vão? Ergui com grande esforço a cabeça, que poderia facilmente se soltar do corpo, e olhando na direção da luz das velas vi o Senhor Yama ladeado por juízes do submundo, sentados com sorrisos oleaginosos em seus rostos. A raiva se agitou dentro de mim. Ao inferno com eles!, pensei, o que era bem apropriado. Que me reduzam a pó num moinho ou me transformem em pasta num pilão, se quiserem, mas não vou recuar.
– Sou inocente! – bradei.
http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/pelo-mundo/leia-um-trecho-de-mo-yan-nobel-de-literatura-de-2012/ 

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