Augusto
Nunes
O dramaturgo Nelson Rodrigues
inventou o teatro brasileiro em 1943, com a peça Vestido de Noiva. O romancista, com o pseudônimo
Suzana Flag ou sem camuflagens, devassou e simultaneamente seduziu o universo
habitado por aquela que muitos anos depois seria batizada de “nova classe
média”. O cronista do Brasil real - enquanto colecionava achados metafóricos
que o transformariam num frasista incomparável e concebia imagens
magnificamente exatas - pariu criaturas que, conjugadas, mostram não o que os
nativos da terra gostariam de ser, mas o que efetivamente são. O torcedor
apaixonado do Fluminense descobriu que “a mais sórdida pelada é de uma
complexidade shakespeariana” e foi o primeiro a coroar Pelé. Ele foi e fez tudo
isso - e muito mais - em apenas 68 anos de vida. É compreensível que o dia da
morte física de Nelson Rodrigues tenha sido também o primeiro dia do resto de
sua eternidade.
A imortalidade de Nelson Falcão
Rodrigues, nascido no Recife em 23 de agosto de 1912, é reafirmada pelo
centenário do gênio. Diferentemente das efemérides do gênero, desta vez não foi
preciso reapresentar o país a outra vítima da amnésia endêmica que chegou com
as primeiras caravelas. Desde a década de 70, quando começou a transformar-se
numa prova contundente de que nem toda unanimidade é burra, Nelson está livre
da temporada no limbo a que são condenados os grandes mortos. De lá para cá,
não se passou um só dia sem que estivessem em cartaz peças teatrais ou filmes
baseados em sua obra, ou sem que fossem vendidos exemplares dos livros que
continuaram a multiplicar-se em edições sucessivas. Também é certo que neste
momento, em alguma esquina ou mesa de botequim, alguém está animando a roda de
conversa com a evocação de uma frase ou criatura de Nelson Rodrigues. Ou apenas
Nelson, porque basta o prenome para a identificação de um velho conhecido.
A admiração por Nelson hoje é
compartilhada por todos os brasileiros com mais de dez neurônios - sejam quais
forem a idade, a filiação política, a tendência ideológica, o signo, o peso e a
estatura. E assim sempre será, porque os muitos grandes momentos de Nelson
Rodrigues nunca ficarão grisalhos. A crítica de teatro Barbara Heliodora prevê
que, como ocorre com a obra de William Shakespeare, pelo menos quatro peças de
Nelson - Vestido de Noiva, Boca de Ouro, A Falecida e O Beijo no Asfalto - continuarão encantando
plateias daqui a 500 anos. Os descendentes dos nossos tetranetos reconhecerão
uma similar de Engraçadinha na garota ao lado, ou dormirão imaginando que
espécie de veículo estará transportando Solange, a dama que, no Brasil do
século XX, caçava aventuras no lotação.
“Ele
será sempre um grande autor”, afirma Barbara Heliodora, que atribui a Nelson
Rodrigues a subida aos palcos dos diálogos que reproduzem a língua falada pelas
plateias. “Nelson era um repórter extraordinário, e foi muito influenciado pela
experiência como jornalista”, diz. “Tinha um ouvido tão maravilhoso que
conseguiu captar o brasileiro falando. Nós aprendíamos na escola que poderíamos
falar errado, mas deveríamos escrever corretamente. Os autores escreviam certo,
esquecidos de que aquilo era para ser falado.” Só depois de Vestido de Noiva os atores começaram a falar o
português das ruas. A descoberta do diálogo em brasileiro fez de Nelson
Rodrigues, segundo o crítico Sábato Magaldi, “um autor seminal, que fecundou a
nossa
Segundos depois, sentava à mesa e já começava a batucar mais uma de suas histórias da “cabra vadia”, personagem que testemunhava entrevistas imaginárias que ele conduzia
Nelson diverte crianças de colégio com uma encarnação Nas redações, Nelson parava, tomava café e fazia uma piada com os colegas.
Nelson Rodrigues com Sebastião Araujo, técnico do seu time do coração, o Fluminense, no difícil ano de 1979, quando o time perderia o campeonato carioca para o Flamengo
Nelson
diverte crianças de colégio com uma encarnação da “cabra vadia”, personagem que
testemunhava entrevistas imaginárias que ele conduzia
Nas
redações, Nelson parava, tomava café e fazia uma piada com os colegas. Segundos
depois, sentava à mesa e já começava a batucar mais uma de suas histórias
Nelson
Rodrigues com Sebastião Araujo, técnico do seu time do coração, o Fluminense,
no difícil ano de 1979, quando o time perderia o campeonato carioca para o
Flamengo
Se Barbara Heliodora consegue
distinguir o jornalista do dramaturgo, os amigos do singularíssimo pernambucano
criado no Rio de Janeiro sempre enxergaram um Nelson só, que parecia vários por
ser, na definição do jornalista e escritor Otto Lara Resende, um feixe de
paradoxos. “É um profundo individualista e vive da emoção coletiva”, disse
Otto. “Foi um conservador e tem uma obra revolucionária. Orgulha-se de ser um
reacionário e foi um dos autores mais censurados do Brasil.” O psicanalista e
escritor Hélio Pellegrino achava que todas as versões do amigo viviam sob “o
império da fantasia, em que realidade e invenção sempre se misturam”. Se a
opção se impunha, a realidade sofria outra derrota: “Nelson é fiel à sua
imaginação”.
Nelson Rodrigues era perigosamente
imaginoso tanto com desafetos quanto com os mais íntimos amigos. Um deles só
descobriu que fora transformado no nome alternativo da peça que entraria em
cartaz naquela noite ao ler o enorme letreiro em neon: “Bonitinha mas Ordinária ouOtto Lara Resende”. A brincadeira que ultrapassara
os limites do sarcasmo suspendeu por algumas semanas as conversas diárias entre
o autor da homenagem e o integrante do grupo que reunia o que a usina de
superlativos qualificava de “amigos além da vida e além da morte”. Anistias
concedidas por Nelson Rodrigues eram amplas e irrestritas, mas tinham prazo de
validade. Consertado o estrago, o parceiro ofendido não demorava a pousar em
alguma história contada por quem sempre desprezou a fronteira que separa o real
do imaginado.
“A crônica policial piorou porque os
repórteres de hoje não mentem”, lastimava o homem que ainda menino enfeitava
com detalhes fantasiosos histórias de casais que se matavam por amor. Nas
crônicas ou nos romances de Nelson, o verdadeiro tirava o irreal para dançar o
tempo todo. Com um sotaque lisboeta que nunca existiu, Otto Lara Resende era repatriado
de Portugal para contracenar com a cabra vadia, única espectadora de
entrevistas imaginárias conduzidas em um suposto terreno baldio - ou, ainda,
para testemunhar mais um assombro provocado pelo Sobrenatural de Almeida, que
alterava bruscamente uma situação ou o resultado de um jogo do Botafogo.
Passados mais de trinta anos, está claro que histórias e personagens jamais
ficarão datados. As criaturas que se tornaram inverossímeis num Brasil menos
primitivo viraram documentos de época.
Tem lugar assegurado no Museu
Nacional do Maniqueísmo, por exemplo, o padre de passeata, religioso que
comparecia em trajes civis às manifestações de rua contra a ditadura militar.
Estará ao lado de sua versão feminina, a freira de minissaia, e a poucos metros
da estudante de psicologia da PUC, que queria saber o que o cronista achava da
morte de Deus, e da estagiária de calcanhar sujo, que se formara em jornalismo
para esbanjar autossuficiência e mau humor nas redações. Todos nascidos em
1968, são filhotes do direitista atormentado pelas atividades clandestinas do
primogênito, engajado na luta armada. Em alguns episódios, Nelson foi longe
demais na louvação de uma ditadura que torturava e matava inimigos. Mas o
conjunto da obra é tão luminoso que revoga as manchas escuras.
Outras invenções do ficcionista
delirante são atemporais e continuarão por aí durante séculos. O idiota da
objetividade, por exemplo. A vizinha gorda e patusca. Palhares, tão
definitivamente canalha que, na casa do irmão, beija à força o pescoço da cunhada
que passa pelo corredor. Esses seguirão contracenando com personagens que
iluminam a face do Brasil que tenta, inutilmente, esconder as taras, as
vergonhas familiares, a guerra conjugal, o adultério, os preconceitos, a
sexualidade reprimida, a mesquinhez patológica. “Se todo mundo conhecesse a
vida íntima de todo mundo, ninguém cumprimentaria ninguém”, resumiu Nelson
Rodrigues.
Os habitantes desse universo fantástico têm o olho rútilo e o lábio trêmulo,
reagem à adversidade com arrancos de cachorro atropelado, seu pensamento é tão
raso que uma formiguinha poderia atravessá-lo com água pelas canelas. Grã-finas
com narinas de cadáver suportam maridos com três papadas e três bochechas em
cada lado do rosto. A cabeça dos intelectuais tem a aridez de três desertos, os
especialmente infelizes se sentam no meio-fio para chorar lágrimas de esguicho,
caem tempestades de quinto ato do Rigoletto, há
homens bonitos como havaiano de cinema, faz um calor de rachar catedrais e
existe gente varada de luz como santo de vitral. Um mundo assim, espalhado por
dezessete peças, nove romances, sete livros de contos e crônicas e milhares de
artigos em jornais, merece mais que uma única vez sobre a face da Terra. O
mundo maravilhoso que Nelson Rodrigues criou merece existir para sempre.
Obsessivo confesso e sem cura,
obcecado especialmente pela morte, Nelson jurava que, durante a infância, fugia
da escola para assistir a velórios. Aos 13 anos, estreou como repórter de
polícia no jornal do pai, cobrindo um caso de suicídio passional. Adolescente,
ouviu o som do tiro de revólver disparado por uma mulher que, inconformada com
o noticiário que lhe devassara a vida íntima, resolveu vingar-se com o
assassinato do dono do jornal, Mário Rodrigues, ou de algum de seus filhos. À
morte do irmão, o ilustrador Roberto Rodrigues, seguiu-se a do pai. Depois
vieram os anos de pobreza, a tuberculose que lhe impôs duas internações em
Campos do Jordão, as chuvas do trágico verão carioca de 1966 que mataram o
irmão Paulo e toda a família, o fim angustiante do primeiro casamento, as
turbulências do segundo, o nascimento da filha cega, as torturas infligidas ao
seu filho Nelsinho no cárcere. Em 21 de dezembro de 1980, o homem que passou a
vida inteira pensando na morte se foi. Nunca se saberá se já tinha descoberto
que era imortal.
Matéria publicada originalmente em VEJA, edição 2283, de 22 de agosto de 2012